Daniel Campos

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Rosa de retalhos

O domingo amanhecia em fiapos de esperança no corpo esquálido de uma rosa. Contrariando o clima de Copa do Mundo, o verde e o amarelo davam lugar a trapos frios, quiçá tendência nas passarelas de Milão. Uma realidade tão próxima quão distante daquela mulher de corpo magro e cabelos descorados. Sol e tintura barata.

Em torno do cálice do seu corpo, possíveis roupas, impossíveis cobertas. Eram pele e lã e fibra sintética num contorno sem rima. Era Rosa. Mas não era rosa flor, era rosa espinho. Espinho de um inverno que feria bania entristecia o dia. E pelas rachaduras de uma prancha de papelão aquela rosa nascia.

Era Maria Rosa dos Santos embora, como evangélica, ela fosse obrigada a não acreditar no próprio sobrenome. Isso também não a incomodava, afinal herdara o Santos de um pai que nunca viu. Mas naquele canteiro de árvores miúdas ao lado da Rodoviária não havia nem mãe, nem pai, nem irmão, nem filho... Era ela e o vazio. O vazio de palavras, de gestos, de atitudes. E esse vazio ensurdecia seus ouvidos.

Nos olhos enegrecidos, os vestígios da poeira da estrada que as últimas lágrimas não conseguiram arrastar. O interior do Tocantins já ficara tão distante. Chegara há três dias à Brasília. E há três dias não comia, não dormia, não sabia o que ia ser de si. Sem emprego, sem marido, sem casa, deixou mãe e dois filhos pequenos. Saiu sem bagagem, com se fugisse ou quisesse voltar logo. Nem ela sabia de seus desejos. Sabia apenas que era preciso nascer novamente.

A três dias de completar 21 anos, rompeu os cordões estruturais e umbilicais e, sem bilhete ou maiores despedidas, saiu pela madrugada sertaneja em busca de uma estrada. Ao encontrá-la, vendeu seu corpo em troca de alguns quilômetros. Não se arrependia. Não se condenava. Não se auto ou baixo estimava, apenas sonhava com um futuro que a cada passo se distanciava um pouco mais. Fugiu, caiu, feriu, prostituiu em nome de um futuro tão abstrato quão as linhas das suas mãos. Mãos que já reviraram a terra na lavoura. Mãos que já trabalharam em casas de família. Mãos que, pra ajudar a mãe, já bateram muito bolo de encomenda. Mas o poetinha já dizia que temos braços longos para os adeuses. E Rosa, assim como Vinícius de Moraes, morria ontem e nascia amanhã.

Em busca desse tempo que nunca chegava, alojou seus dramas na boléia de um caminhão rumo a Goiás. De carona em carona, chegou à Brasília. Queria falar com Lula. Achava que Brasília era a minissérie JK exibida pela Rede Globo. Pobre Rosa.

Em solo brasiliense, não tinha para onde ir, o que fazer, o que vestir. Foi até o Congresso Nacional, mas sua vida não mudou. Dentre o encontro de tantos poderes, seu destino estava vendado assim como a Justiça. A terceira ponte, cartão postal em todas as lojas de souvenires, não a levava para lugar algum. A catedral em formato de feixe de trigo não a alimentava. E para fazer uso de rimas, entre a simbologia do mortal e do imortal dispostas no Eixo Monumental, Rosa ficou mesmo rodopiando pela Rodoviária. Quem sabe entre os rodopios, encontrasse um caminho.

Por mais que se esforçasse, nenhum daqueles ônibus lhe dizia nada. P Norte, Buritis-IV, Cruzeiro, L2 Sul... Tudo soava estranho aos seus olhos migrantes. Nada parecia lhe conduzir ao tão sonhado futuro. E quando se viu em desespero, sem nenhum amparo de família, amigo, cachorro... pediu. No princípio relutou, era difícil falar, estender o braço, olhar nos olhos do outro. Mas não lhe restava alternativa, precisava de dinheiro. Além da falta de experiência, a concorrência era muita. Uma legião de pedintes caminhava ao seu lado, a sua frente, as suas costas. O pouco que conseguiu só serviu para aumentar sua vergonha.

Vergonha de encarar a lembrança dos filhos. Charles e Diana. Crianças, com nomes aristocráticos, expulsas de um ventre plebeu. Para não sofrer ou para esquecê-los de vez, não carregou nem foto nem nada que os lembrasse. Cada criança tinha um pai. O primeiro, era um namorado de infância que fugiu quando a viu grávida. Ao seu lado, Rosa murchou de decepção. Ele era o homem com quem formaria uma família, com direito a cachorro no tapete da porta e varal cheio de roupas no quintal. Num ato despido da poesia de Shakespeare, o príncipe se tornara bandido nas páginas do seu conto de fada. Infelizmente, as cortinas da ilusão se fechavam no palco de Rosa.

O segundo era um senhor, um padrasto que, quando bêbado, fazia uso de toda a força bruta para conseguir um pouco de prazer. Rosa dizia ter nojo de seu corpo depois que foi tomada por aquele homem. E foram várias vezes. Nunca foi à delegacia por medo. E além das mãos do padrasto, ela apanhou de uma mãe que enchia a boca para chamá-la de mentirosa. Por pudor ou superstição, Rosa não trouxe sua coleção de enganos e desenganos para Brasília. Chegou despida de passado e virgem de futuro, mas em sua caminhada só encontrava medo, medo, medo.

- O que você quer? - É da polícia? - Vai me tirar daqui? - Eu não fiz nada! - Não tenho nada! ? Não sou daqui! - Me ajuda! ? Tô com fome! - Me deixa em paz! - Não quero falar! - Vá embora! - Não sei! - Não sei! - Não sei!

Era uma ladainha de medos. Cada resposta, cada informação, cada história se escondia naquela Rosa de pouca prosa. Os carros passavam pelo eixo monumental. Os meninos vendiam chicletes no sinal. A rodoviária fervia. O ir e o vir de uma gente fluía em tantos de repentes. O cheiro de urina dançava nos braços do óleo diesel. Serpenteando pelo concreto, ambulantes tentavam sobreviver. Mas aquela mulher não tinha nada pra vender, não tinha passe, não tinha nenhum chiclete. Mas tinha um sonho. Queria ir para São Paulo. Com a mesma ilusão que desembarcou em Brasília, queria ir para São Paulo.

- Aqui não é nada do jeito que eu pensei. Mas em São Paulo deve ser diferente. Lá tem muita indústria, muito emprego. Tanta gente deu certo. Tem até o sobrinho da dona Leontina, lá do mercadinho da rua, que foi pra lá e já tem até carro. Em São Paulo eu vou dar certo. Meu futuro tá lá.

Contrariando a intensidade impressa em seu nome, era uma rosa feita de lampejos. Não tinha uma linha de humor definida. Fisicamente, podemos classificá-la de instável. Quimicamente, de volátil. E poeticamente, de faísca. Podia ser áspera e macia na mesma pétala de segundo. Seus olhos diziam coisas renegadas por sua boca, que não sabia, ao certo, o que dizia.

E no picadeiro de delírios e fantasias, rasga-se a lona da realidade quando aquela mulher me pergunta por alguém:

- Eu cheguei aqui e não vi nem Lula nem o Zé Dirceu nem o Gilberto Gil. Eu pensei que esse povo recebesse a gente, falasse com a gente, desse bom-dia, boa-noite. Pensei que era fácil achar essa gente na rua. O Lula fala tanto na televisão, mas até agora nem ouvi a voz dele por aqui. Ele tá todo dia no Jornal Nacional, mas aqui que é bom... Mas sabe que eu nem faço mais conta de ver essa gente. Queria mesmo era ver aquele moço que ajuda tanta gente. Aquele que também aparecia na televisão. Queria encontrar o... como é mesmo o nome dele?... aquele magro, que tem AIDS?... o Paulinho, não... o Toninho... também não é esse... é... o Betinho, isso, o Betinho... O pastor lá da minha cidade tem umas fotos dele na igreja. Diz que é uma pessoa que só faz bem pras outras... um exemplo do que a gente tem que ser. Você sabe se ele mora em Brasília?

Hebert de Souza...

Lágrimas...

Palavras embargadas...

Aquela Rosa parecia não existir. De tão mágica, parecia ficcional. Mas era real. Real em seu cheiro de suor tatuado no corpo. Real em seus dramas impregnados de sentimento. Real em seus instintos, em seus conflitos, em seu mundo que passa quase despercebido num olhar nu.

Algumas árvores depois, mais mendigos. Pessoas que tiveram seus sonhos endurecidos não pelos dias frios, mas pelos dias vazios. Eram esses dias vazios que esperavam àquela rosa. E a esperança se misturava ao desespero do inverno não deixar despontar sua primavera tão sonhada.

De repente, o instinto de sobrevivência fala mais alto. Os olhos de lombriga de Rosa avançam para cima de um prato de fast-food. Mastiga, come, tritura, engole, devora. Depois dá às costas ao trânsito do sol, embrulha-se em seus retalhos de vida e, já deitada, cerra os olhos na tristeza do cerrado.

Quem sabe de barriga cheia seus sonhos fossem mais nítidos.


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