Daniel Campos

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Retrato da poesia

Agradeço a poesia. Esta chama que se esconde em meu corpo e se expõe ao mundo no momento exato. Sem mais cerimônias ou demasias. A poesia, o fruto de toda a fantasia, que quebra as fronteiras com o impossível e turva a realidade. Fonte da miragem quase concreta finge que é concreta. Finge que é real. Finge e só finge.

Poesia. Sobrepõe-se a frigidez cotidiana e constrói uma nova cena no antigo desejo dos meus olhos. Essa chama, quando oculta, em meu corpo, notada somente por mim, conforta-me diante da materialização mundana. A poesia não é fingimento ou hipocrisia. A poesia, embora triste, tenta ser felicidade. A poesia tenta, mesmo leiga, compreender a existência e o destino da razão, em seu singular e em seus plurais. A poesia busca os sonhos, ou melhor, a idealização da vida.

A poesia volta os olhos dela a mim quando eles nem pensam em me olhar e mais... faz me sentir que eles estão me olhando. Sua boca que não me dirige sequer uma palavra e logo está me rogando em suas juras. Não há mais medo, nossos olhos se confidenciam sem mais porquês, também, não é preciso se ter "porquês" quando se ama. Nossos lábios se encontram entre a naturalidade e a surpresa. Nós nos encontramos por inteiro. Não há suspeita alguma sobre a fantasia. Vêm à tona poesias que de improviso murmuro-a num instante único. Só há nós dois e a poesia. Mas uma brisa sopra a realidade e desuna nossos anseios. Nos meus olhos a sua boca calada não testemunha lembranças. A incerteza me percorre. Não tenho comigo o seu perfume, porém lembro-me perfeitamente das poesias improvisadas, sonetos inteiros, numa nitidez que me espanta, presos em meu pensamento. Estou no limite... De um lado a realidade, do outro o sonho. Estou no limite, na faixa estreita e infinita da ilusão.

Enquanto houver força, ou melhor, poesia em mim, eu carregarei essa máscara. Não me refiro à máscara do egoísmo ou da fuga. Máscara que ora me transfere uma alegria estonteante ora me faz sentir o seu peso. No instante em que nem a maior chama poética existente consegue desfigurar a realidade a máscara é partida e o meu corpo escancarado à dor. À dor armazenada. À dor que consome os sentimentos e dá à luz a uma solidão tamanha. A alma parece estar nua, havendo somente a carne (podre) e a realidade (insólita). Sinto-me envolto de correntes e algemas, preso aos dogmas do cotidiano.

A sensação do abandono perante a poesia não se explica. Porém, quando menos a espero, mais ela volta. Retêm-me em seu colo e me faz chorar num choro mendigo que pede o deslizar de uma mão pelo meu rosto... E assim vai levando as lágrimas. Muitas vezes o choro é seco e, interior e as lágrimas escorrerem num sorriso falso. Fico quieto, no silêncio dos braços da poesia. Pouco depois, ela está em meus braços, em meu peito, reascendendo a chama que agonizava. Novamente, sou invadido pela inspiração que leva o pranto e traz a fantasia. O sofrimento passado torna-se produto da imaginação, e como um sonho à noite, a verdade se perde numa neblina de suposições.

A poesia presente se aloja em minha boca vazia, fria, sombria... Boca que volta a sentir as palavras, o seu sentido. E logo vem àquela vontade de declamar tudo aquilo para alguém, mas perco-me nas promessas da ilusão. O sentimento extravasado se estanca. A mão se debruça sobre o papel com uma caneta qualquer e realiza a minha recitação muda. O papel fica guardado, na espera da ninfa, aquela que alimenta a minha chama poética, que se traduz em versos. Muitas vezes ela está na folha virgem. Escrevo-a. Prendo-a nas rimas... Tudo na tentativa de trazê-la para perto. A agonia da espera é incontestável. A poesia vai me iludindo, tentando aliviar a solidão intermitente entre um poeta e uma folha de papel em branco.


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