Daniel Campos

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Quinta-feira

No calendário oficial, uma data qualquer. No calendário extra-oficial, também nada de relevante. Apenas mais uma quinta-feira a ser preenchida em uma página em branco na agenda. Enquanto azul, a quinta-feira, segue o caminho de tantas outras. Um azul comum, de um céu comum, com deuses comuns. Nada de nuvens, de fuligens, de cometas, de naves espaciais e de balões grenás.

De repente, ela surge avassaladora como a rainha da Mesopotâmia. Ela surge e a quinta-feira ganha seu nome e o azul escorre pelas frestas da mesmice. E do azul, faz-se à noite num escuro cintilante. Rapidamente, são chamadas as estrelas ainda dormentes. E a taça onde o sol reinava absoluto como uma rodela de laranja se enche de noite. Todos os encantos, lendas e suspenses são postos e depostos naquela taça. E ela se transforma em líquido. Um líquido que escancara e amortece e encara e aquece os lábios. Nos lábios, o cheiro da noite. Cheiro de brisa, de orvalho, de infinidade.

Seus olhos fluem como mirantes onde os iludidos debruçavam-se para admirar a noite. Uma noite que, ao contrário de tantas outras, não chega aos gritos, expulsando o dia, tirando sua pele, querendo lhe ver pelo avesso. Dessa vez, a noite chega numa candura da qual não se tem notícia.

Chega e já vai fazendo discípulos, arrematando multidões. É um mar de noite navegando nas costas do dragão de São Jorge. E desse mar emergem e submergem tantos sonhos quanto atlândidas perdidas no colo daquela mulher. Mulher que captura nossos sonhos antes mesmo de serem sonhados. Captura-os em sua teia azulada e abraça-os estrangulando-os com seus oito braços e dezoito mil abraços.

De repente, como no mais importante dos brindes já brindados até então, ela ergue a taça da noite rumo a uma lua que não dá as caras naquele céu. Falta uma lua. Chamem à polícia, os bombeiros, à defesa civil, os astrólogos e os astrônomos e os astronautas. Como haveria noite sem lua? Talvez fosse um céu forjado, mas não... Basta reparar com um pouco mais de cuidado àquela mulher soturna.

Ela traz as luas espalhadas pelo seu vestido. Luas empalhadas. Coleciona-as. As luas esbranquiçadas, num resto de azul, num começo de lilás, envoltas em seu vestido negro. As luas nas ruas daquela mulher que se dizia em frases nuas tão cruas de si. Quantos seresteiros improvisam um violão diante da mulher que passa com todas as luas em seu vestido? Quantos lavradores prevêem chuvas e secas diante daquela mulher? Quantas marés derramam suas águas salgadas diante daquela mulher de luas espalmadas nas palmas de sua mão cigana? Quantos partos são antecipados diante da presença prematura daquela mulher?

Em alguma daquelas luas dependuradas em seu vestido, um quê de tristeza. Lua minguada. Lua, lua, lua. Talvez porque nasça de algumas lágrimas que se perdem pela quinta-feira. Uma quinta-feira que tinha tudo para ser uma quinta qualquer se não fosse o calendário lunar.


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