Daniel Campos

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24/02/2008 - Quando eu morrer

Há quem deixe testamentos ou confesse suas últimas vontades à meia-voz. Eu, nessas linhas, escancaro o meu desejo. Quando eu morrer, não quero velórios, funerais, cemitérios. Não há nada mais sem graça do que aqueles túmulos um do lado do outro. Aquelas lápides frias, aquela terra pesada, aquele silêncio todo. Dá uma vontade de gritar, de sair correndo e mal-dizendo quem inventou tudo aquilo. Não estou blasfemando, posto que não acredito que as almas ficam por ali. Ao menos, as almas de luz. No fundo, cemitério é um depósito de corpos. É uma espécie de prova que você não existe mais. Há algo mais ridículo do que isso?

E os rituais? Odeio o cheiro que impregna os velórios. Prefiro ser o escritor mais plebeu que já existiu a receber uma coroa de flores. Chega a me dar calafrios e enjôos aquela morbidez adocicada. E aqueles crisântemos que colocam sob os túmulos em datas especiais? Deus me livre e guarde daquelas flores amareladas, brancas e roxas com cheiro de morte. Outro cheiro a infestar esse ambiente é o das velas baratas. Pode perceber, velas de velório ou cemitério têm outro cheiro. Por fim, o aroma da falsidade. Aqueles falsos amigos chorando sobre seu corpo e, bem baixinho, dizendo: bem feito! Como eu não tenho quatro amigos, meu caixão teria de ir naquele carrinho empurrado por coveiros loucos para roubar os dentes de ouro que não tenho.

Mas nada me deixa mais apavorado do que o caixão. Não passo em frente de funerárias para não correr o risco de ver um deles e fujo daqueles carros que transportam defuntos. É pior do que um gato preto cruzar a minha frente. E quando me imagino deitado naquele pano roxo logo vem uma falta de ar. Tenho pesadelos com o caixão a sete palmos da superfície. Não tenho vocação para ser tatu. Eu e aquela caixa de madeira. Eu acordando no meio daquela escuridão, com um terço na mão, com o corpo coberto de flores. As mãos batendo na tampa, as cordas vocais estourando de tanto gritar, o oxigênio mais escasso a cada segundo.

Se fosse para escolher, preferia morrer como Ulisses Guimarães, sumindo no meio do mar. Viraria comida de peixe e corais coloridos grudariam em meus ossos, fazendo uma bela escultura. Seria vizinho de galeões naufragados, de tesouros piratas, dos habitantes de Atlântida - a cidade perdida. Mas, por outro lado, o oceano, por conta de sua dimensão tamanha, também me assusta. O infinito, por mais desejado, intimida-me. E morrer afogado também não deve ser um destino tranqüilo. Os pulmões enchendo de água, os braços desistindo de nadar, os olhos turvando naquele azul nem sempre turquesa.

Por tudo isso, deveríamos nos desintegrar. Chegando o dia de nossa morte, nosso corpo deveria se esfarelar e sumir no universo. Se nós nascemos do pó, deveríamos retornar ao pó e sumir num pé de vento. Teríamos vários destinos. Por exemplo, a areia da praia, sendo lambidos pelo mar e pisados por casais de namorados. Poderíamos ser soprados para o deserto, ardendo naquele vazio. Poderíamos também ir para uma terra fértil e, quando chovesse, brotaríamos como árvores. Fecundando o universo, podíamos virar estrelas ou escuridão, dependendo dos nossos feitos aqui na Terra. Os bons seriam transformados em luz. Os ruins, em sombras. E assim, todos viveriam juntos numa espécie de céu bíblico.

Mas como a humanidade ainda não evoluiu a tal ponto, quando eu morrer, quero ser cremado. Independente de morrer de morte morrida ou matada, eu exijo que ateiem fogo em meus restos mortais. Quero queimar como fogueira de São João. Mas não precisam deslizar meu corpo pelo forno funerário em uma urna de chumbo. Quero que me queimem no quintal de casa mesmo. Joguem uísque 12 anos em minha pele e risquem palitos de fósforo. Quero ser chama.

Depois, quero que a mulher amada recolha as minhas cinzas. É fantástico pensar que meus quase setenta quilos irão se transformar em um punhado de cinza. Que ela, a mulher amada, passe essa cinza pelo seu corpo, feito um bálsamo. Que eu infeste cada poro da mulher amada. Que ela, a mulher amada, disponha minhas cinzas numa mesa e me aspire como se eu fosse uma carreira de cocaína. E que assim, em meio a efeitos alucinógenos, ela delire em lembranças. Que ela, a mulher amada, pegue o que restou de mim e faça uma cruz na fronte, como que na quarta-feira de cinzas, consagrando-se a mim por toda a eternidade.

Ah! Que ela, a mulher amada, faça aquele brigadeiro que ela tanto gosta e entre o chocolate e o leite condensado, polvilhe as minhas cinzas. Que ela me coma com todo apetite. Que ela, a mulher amada, pegue minhas cinzas em seus dedos e se ame, semeando um pouco de mim em seu útero. Ah! Que a morte seja uma grande mentira a ser desmascarada pelo medo e pelo desejo da mulher amada. Quando eu morrer, que eu nasça da poesia da mulher amada.


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