Daniel Campos

Imprimir Enviar para amigo
Quadro a quadro

Os passos demoravam a mudar. Tinham a lentidão de uma terra que demorava vinte e quatro horas para dar uma volta em torno de si. Era tempo demais para quem sempre levou a vida de forma ligeira. Naquele corpo farto de tempo, a pressa do mundo. Andou com sete meses e três semanas. Nasceu com oito meses. Foi gerada uma semana antes do casamento de seus pais, num ato escondido, no celeiro da fazenda. Falou antes de completar um ano. Foi a primeira de sua turma de amigas a beijar. Foi correndo embora de casa quando ouviu o primeiro convite de amor eterno. Escapuliu dos olhos do pai no lombo do cavalo mais veloz da fazenda.

Foi a primeira das vizinhas a ter filho. Foi a primeira da sua família a dizer eu te amo em público. Foi a primeira das fieis a peitar o padre diante da vontade de um segundo casamento. Foi a primeira de muitas a se casar novamente. Foi a primeira professora da escolinha. Foi ela a primeira a cortar as estradas do vilarejo em um carro. Sempre foi a primeira, sempre a mais ligeira, sempre chegou antes. Mas o sempre parece ter perdido a força.

Agora, o mundo passava devagar. Vinha apoiada nos braços de alguém que não a tinha como a primeira de suas prioridades. Era vestida com a roupa que não era a primeira em seu gosto. Vinha para um lugar que não era o primeiro, mas o último de seus lugares. Era sempre a última a chegar, a passar, a ser vista, a ser beijada, a ser desejada, a ser convidada. Não entendia porque a morte lhe deixara no final da fila. Para ela, ficar no fim da fila já era a própria morte.

Aos 92 anos, caminhava devagar nos últimos horários da tarde e sentava-se em um banco de pedra. Dali, ela via os casais de namorados passando rápidos de mãos dadas; homens engravatados passando rápidos; mulheres de vestidos passando rápidos em perfumes também rápidos; meninos passando rápido com seus celulares nas mãos; motoristas passando rápidos com seus carros; meninas passando rápido com sorvetes que iam derretendo sob a ação cronológica e climática de um tempo de várias faces.

Os passos pareciam estar em baias e passar rápido. Era como se fosse uma disputa. E ela estava ali, vencida. Era a última e isso era mais do que um estado, era um ultimato. O mundo passava e ela ficava. A vida passava e ela ficava. O sonho passava e ela ficou. Aquela mulher que sempre lhe habitou já havia passado e ela ficou.


Comentários

Nenhum comentário.


Escreva um comentário

Participe de um diálogo comigo e com outros leitores. Não faça comentários que não tenham relação com este texto ou que contenha conteúdo calunioso, difamatório, injurioso, racista, de incitação à violência ou a qualquer ilegalidade. Eu me resguardo no direito de remover comentários que não respeitem isto.
Agradeço sua participação e colaboração.

voltar