Daniel Campos

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Previsões

Um dia, não sei há quanto tempo distante de mim, a mulher do poema estará solitária em casa. Estará à vontade, vestida de pés descalços e uma calça qualquer. Sozinha, do verbo solidão, divorciada ou à espera de um marido. Por quem espera pouco importa, em qual cidade, sob qual motivo... Não sei. Profetizo apenas que ela estará em seu quarto abrindo e vasculhando gavetas à procura de não sei o quê. Talvez buscasse algo tão irrelevante que nem valha a pena descobrir. Procurará as voltas com uma ansiedade já conhecida.

De repente, abrirá uma gaveta cheia de papéis. Seus olhares logo ficarão impressos em uma daquelas folhas. Diante do espanto, não se lembrará de nada posterior à data daquele papel. As pernas ficarão bambas, os olhos irão para longe, o passado virá à tona. Ela sentará dobrando as pernas na cama, envolta de um monte de bichinhos de pelúcia. O texto digitado ira provocar uma dezena de gestos já vistos. A respiração ficará tensa, o silêncio longínquo e a boca seca...

Os sentimentos ali no papel ainda se mostrarão vivos após anos e anos de exílio. Talvez os sentimentos estejam ainda mais nítidos, ou mais fortes ou, simplesmente, diferentes. A poesia envelhecida terá o sabor de um vinho de longa safra. As palavras estarão mais bem acabadas. A mulher do poema irá se ler, reler-se e se ler novamente. Todas as leituras se darão em voz baixa. Reviver-se-á.

As lágrimas voltarão e ela terá de reconhecer um tempo ainda não esquecido. Tudo estava guardado em seu corpo, retraído, comedido. Tentou sufocar tudo aquilo em um momento crítico, mas foi em vão. Não poderá mais negar o que estava naquele papel. Ela não irá rasgar, queimar, destruir o papel como não havia feito tempos atrás. Irá deixá-lo na mesma gaveta, escondido de tudo, menos dela. Passará a relê-lo, ou melhor, reler-se com mais freqüência.

Mas naquele dia, ainda em lágrimas, irá se despir. Vagarosamente, a calça, a camiseta... Tudo tende ao chão. Nua, abrirá o guarda roupa e colocará, novamente, a mesma saia, a mesma blusa do último encontro e se fará novamente a dama de azul, cheia de fantasias e ilusões. Independentemente da época da fantasia e das ilusões. Os pés continuarão nus.

Prenderá o cabelo e irá se maquiar e se borrar com lágrimas, brincos, anéis, colares. E depois de se arrumar, lembrará de tudo, quadro a quadro. E na lentidão dos gestos anteriores, mergulhar-se-á no espelho lembrando-se das minhas últimas palavras e esboçará, com todo esforço, um sorriso. E como em nenhum outro momento, tentará se fingir felicidade. Uma felicidade que vale de nada. Nem para ela, nem para a poesia, nem para o tempo.


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