Daniel Campos

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Ponte

A noite manchara os lábios de uísque e os delírios corriam à solta. Diante dos olhos, o horizonte de uma ponte na seminudez de três arcos de concreto. De uma ponta a outra da cidade, a ponte se lançava sobre um lago que era mais escuro do que a própria morte. Um lago de águas calmas, aquietadas como se uma lembrança na escuridão do esquecimento. Os pés tocam a ponte sem maiores pretensões. De repente, como se o vento encontrasse a brisa no meio da ponte, ela se encontra com um espelho. Ela vem com os saltos salpicando a ponte. Fuma uma fumaça fina e joga as cinzas do cigarro no lago. E nem se preocupa se queima as cristas daquelas águas negras.

As luzes da ponte, o céu escuro sem estrelas ou luas, o lago sem veleiros com velas em chamas. A noite ensolarada pela ponte. Sob um dos arcos, a ponte parece não ter começo nem final. Sob um dos arcos, uma mulher tem os olhos distantes e o corpo coberto pelas luzes da ponte que é uma nave solta em pleno espaço, as ruínas de um reino de prata incandescente, um pedaço de concreto iluminado flutuando no nada do nada e para o nada.

Em seus olhos flutuam os momentos que não haviam existido nesses anos de desencontros. Momentos que vão desde transas até assassinatos. Olhos de tantas hipóteses. Nos olhos do espelho, a hipnose dos anos. Dois corpos soltos como aquela ponte. Dois olhos que parecem ter marcado, propositalmente e milimetricamente, aquele encontro. E só aqueles olhos de águas negras sabem disso. Mas nenhuma parte do corpo sequer desconfiara desse tete-a-tete. Mesmo que sentimentos descrentes dissessem que não, os olhos sabiam de tudo. De repente, entre retinas gritantes, um silêncio mais que quieto. Como se a quietude da noite recolhesse suas asas e pousasse ali em um dos arcos como uma coruja de olhos esbugalhados e pio de morte. Como se o adeus, não dito, silenciasse aquelas duas bocas. Uma de tantas promessas, outra de tantas fugas. Em ambas, o silêncio. Um silêncio que rompe a lâmina do espelho. Em ambas, os afluentes do silêncio desembocam em dor.

Os corpos que se olham como se não conhecessem um ao outro se tocam, como se as linhas das mãos contornassem os arcos do corpo alheio. Então, começam a dançar. Então, os dois silêncios, presos na mesma boca, misturam-se em um beijo. O espelho se quebra. E antes dos sete anos de azar, do lago emergem ondas. Ondas que trazem veleiros. Ondas que trazem estrelas. Não estrelas do mar, mas estrelas doces. E as ondas se debatem contra a ponte. E as estrelas se incendeiam. E o mar se revolta querendo possuir a ponte em seus grotões. O vento se manifesta de forma drástica e infesta a ponte.

Os arcos da ponte racham, caem aos pedaços, tombam no lado daqueles dois silêncios que, depois de uma eternidade de momentos, conversaram entre si. Como que num passe de mágica não restava ponte. O horizonte estava limpo de qualquer concreto horizontal, vertical ou parabólico e se fazia escuro, por completo. Ou quase. No lago, as águas se acalmam e na superfície das águas resta somente o reflexo de uma lua, embora não havia nenhuma lua presa no céu ou em qualquer outro lugar. Uma lua que brilhava de baixo para cima.


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