Daniel Campos

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Outra vez solidão

O giro da chave era como um sim. Sim. Aquela mulher estava decidida. Não sabia se estava apaixonada, amando, se iludindo ou se a última caixa de remédios que tomara para impressionar a mãe havia afetado seus pensamentos. Mas o importante naquele momento não era a causa. E sim a decisão. E a decisão estava mais do que amadurecida. Afinal, ficara a noite toda pensando. Ou melhor, as últimas noites. Trocara o sonho com roupas de grife, por um sonho mais real. Ao menos, ela achava que o sonho poderia ser mais real.

Por mais angustiante que fosse aquela sensação de mal-estar provocada por esse sonho ou pela falta de sono, ela teve que se decidir. E a decisão foi vomitar de uma vez por toda essa ilusão. Como quem coloca o dedo fundo na garganta. Embora aquele desejo não fosse propositado, ela precisava se empurrar. Já havia esperado tempo demais. E tudo aquilo estava lhe causando febres e tremores. A cada dia sua angustia só aumentava. E era uma angústia predadora. Algumas garrafas de vodka fizeram companhia durante sua noite. Ou melhor, foram alguns copos. Mentira. Foram só poucas doses. A verdade é que apenas uma dose já era capaz de deixá-la com olhos de ressaca. Uma capitu sem machado de assis.

Mas não bastou o sol surgir no céu para aquietá-la. Ela teve que esperar o dia todo. Ficou se remoendo, comendo suas cutículas, contorcendo-se em sua cama de solteiro. Levantou-se, tomou um banho frio e foi para a academia. Quem sabe malhar lhe faria bem a ponto de trazer luz aos seus pensamentos já tão turvos. O suor tomou conta de seu corpo, mas aquela angústia, como a pior das parasitas, não deixava as entranhas de seu pensamento por nada. Ouviu uma cantada, duas cantadas, três cantadas no caminho da academia para casa. Talvez por conta de sua malha, mas fingiu que nem as ouviu.

Ela que sempre sentia um arrepio com cantadas, tinha tara por cantadas baratas, dessa vez nem ligou. Ficou por um tempo andando sem rumo. Voltou para casa, tomou um banho. Outro banho frio. E foi para frente da televisão. Mudava os canais, como se tentasse mudar seus sentimentos. Nada era capaz de desviar seus pensamentos. Nem a televisão nem o computador nem o telefone nem a cama nem a sala de estar nem o chuveiro nem a varanda nem a cozinha nem o quarto de sua mãe nem as brincadeiras chatas de seu sobrinho chato nem o bolo de coco feito por sua vó... Nada estava bom para ela naquele dia. Não podia mais esperar. Outra vez, desposou-se ao chuveiro. Ele, com seus tentáculos aquáticos, mais uma vez apoderou-se do corpo daquela mulher. Ou do que restava daquela mulher depois de tanta inquietação.

Ela não teve paciência para esperar o elevador. Desceu os 12 andares de escada. Ela que nunca pisou naquela escadaria. Talvez quisesse pensar ou, cansar ou, desmaiar ou, cair ou rolar escada abaixo. Mas nada disso aconteceu. Seu tempo era mais presente do que nunca. Ela chega ao final da escada e os pensamentos ainda a beliscam como corvos. A garagem está mais fria do que de costume. Ela tem a sensação de que está no subsolo de seus pensamentos. Ela entra no carro. Um carro vermelho. Senta no banco. Pensa por alguns minutos. Deixa a cabeça cair sobre o volante. Num súbito, vira a chave. Como se dissesse sim. Sim para seus pensamentos. Ganha às ruas com tamanha ansiedade que se esquece do cinto de segurança. Seu corpo vai solto. Solto se não estivesse preso aos tantos pensamentos e tormentos que insistiam caminhar com ela.

Quando volta a si, já está com a boca colada ao interfone do prédio onde mora seu melhor amigo. Ela faz um convite comum. Ela pensa em tantas coisas, mas faz um convite comum. Um sorvete. Ele, como de costume, desce. E nem percebe a ansiedade daquela mulher. Cumprimentam-se com um curto beijo no rosto e entram no carro. Ela começa a andar sem direção certa. Ele não comenta nada. Já devia estar acostumado com as loucuras da amiga. Eram mais de cinco anos ouvindo as histórias mais loucas daquela língua que não tinha travas. Hoje não havia de ser diferente.

Mas ela quer mudar o itinerário a qualquer custo. Tenta prolongar ao máximo a viagem na tentativa de induzi-lo a um erro. Mas desde quando ela seria um erro? Não há tempo para reflexões. Com toda astúcia, ela sobe o vestido. Deixa as pernas mais expostas. O vestido transparente sem costas e com um farto decote e uma sandália de uma só tira no pé... De fato, não havia como estar mais exposta. Havia. Assim como se esquecera mais uma vez do cinto de segurança, esquecera-se de colocar as roupas de baixo. E mesmo com toda essa nudez explícita, ele, arquiteto de profissão, não nota suas curvas parabólicas. Fala e só fala do trabalho, dos estudos, do último show daquele cantor que ela não gostava. Ela não queria ouvir nada daquilo. Queria que ele deslizasse a mão sobre suas pernas, calasse-a em um beijo, puxasse seus cabelos, dissesse algum palavrão. Mas ele só fazia continuar com uma conversa que, assim como os rumos tomados por aquele carro, não daria em lugar algum.

Ela pisou mais fundo para ver se ele tinha alguma reação, se acordava, se prestava atenção em seu corpo. Fez curvas mais ousadas, quase deitou em seu colo, mas ele prosseguia sem reação. O pé esmaga toda sua raiva no freio, o carro deixa uma marca de borracha o asfalto e o pára em frente a uma sorveteria. Na verdade ela queria parar em frente à fachada de um motel ou da sarjeta de um bar copo sujo. Mas ela parou em uma sorveteria. Mais uma vez ela perde os sentidos e quando se dá conta, está tomando uma taça gigante de sorvete de chocolate com calda de chocolate. O sorvete chega a frigir em seus lábios ferventes.

Ele continua falando sobre seu último projeto. Ela que queria ser seu projeto. Ela que queria que ele contornasse suas linhas. Ela que queria deitar em sua prancheta para ser esquadrejada. E ele a falar das curvas da última casa que fizera. Se ao menos desse um trovão, aparecesse um cachorro, caísse uma bomba nuclear no meio da rua, ela poderia ter algum motivo para pular em seu colo. Mas não acontecia nada. E ela não sabia se chorava ou, se gritava ou se corria. Queria saber alguma oração que aflorasse os instintos mais primatas daquele homem, mas há tempos ela havia desistido de santo antônio. O chocolate a deixa ainda mais afrodisíaca. E quando ela cai em si, pela última vez, está com o mamilo esquerdo fora do vestido. Ele continua a falar de construção. E ela vai se desconstruindo toda não sabendo se tinha coragem ou até mesmo se valia à pena ter coragem para as próximas fiadas de sua ilusão.


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