Daniel Campos

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27/07/2008 - O Guardião da Capela

Uma pequena capela. Uma pequena capela esbranquiçada. Uma pequena capela esbranquiçada culminando em uma torre pontiaguda. Uma pequena capela esbranquiçada culminando em uma torre pontiaguda onde mora um sino. Uma pequena capela esbranquiçada culminando em uma torre pontiaguda onde mora um sino que era badalado por um homem que gosta de repetir as frases.

A capela que guarda em seu altar uma senhora negra vestida com um manto e tendo em sua cabeça uma coroa, guarda também um senhor branco, sem manto ou coroa. Entre a fileira de pouco mais de 16 bancos de madeira, o homem que gosta de repetir a conversa já dita, por mania ou por pura poesia, dança. Como um perfeito cavalheiro, enlaça, em um bolero, uma vassoura daquelas que ele mesmo plantava, amarrava e vendia. Ele e a vassoura, dois pra lá, dois pra cá. Canelas magras, bigode perdido entre o negro e o branco e um Oriente no pulso, daqueles que funcionam com um simples chacoalhar do braço. Camisa de viscose de manga curta, feita por sua mulher, dona Ruth, que costurava pro gasto. A calça escorre acinzentada por suas pernas longas até desembocar em sua botina de solado de pneu.

Benedito Oliveira. O Dito ministro. Embora não tivesse votado em Lula na última eleição; embora não conhecesse Brasília; embora, mesmo com idade avançada, ganhasse só o dinheiro da venda das vassouras, seu Dito era ministro. Mas ministro de quê? Ministro da capela de Nossa Senhora Aparecida. Era ele quem zelava pela igreja, desde a limpeza do chão, das hóstias em dia de missa e do tocar do sino. O que Dito achava mais bonito na vida era badalar o sino caipira daquela igreja.

Ele canta bunito demais moço, ce precisa escutá. É igual um canarinho. É qui nem um canarinho da terra. É qui nem um canarinho da terra que canta no pé de jatobá. É qui nem um canarinho da terra que canta no pé de jatobá perto da janela lá de casa de mim. Ce já viu canarinho da terra arguma vez, moço?

Embora conversasse enrolado, Dito era importante no povoado. Quando o padre não podia rezar a missa, era ele quem fazia a celebração. Cuidava daquela capela como se cuidasse de sua casa. Além da limpeza semanal, abria a capela todo dia, ao menos por algumas horas, pra os fiéis rezarem aos pés de Nossa Senhora Aparecida e para trocar as flores do altar. Flores que ele colhia em sua casa mesmo ou pedia aos vizinhos, que nunca lhe negavam.

Mas a minha ida à igreja tinha um objetivo. Saber o segredo da capela, que seu Dito guardava a sete chaves. Quando toco neste assunto, ele solta a vassoura, ergue as mãos em direção ao altar, e franze a testa para mim. Para ele, o tal segredo era conversa proibida dentro da igreja. Talvez tivesse medo de eu descobri-lo. Mas eu insisto no tal segredo que o povo tanto comentava.

Não repita isso nem di brincadera. Nem di brincadeira. Di brincadera.

Ele chega a gaguejar e eu insisto na pergunta. Vendo a minha teimosia no assunto ele me pede para encontrá-lo na venda do Mané. Lá poderíamos conversar. Quando me pergunto o horário do encontro, ele chacoalha seu Oriente, olha os ponteiros e marca para dali 45 minutos.

Eu fiz o que ele me pediu, o que não sabia é que o tempo daquele relógio era diferente do meu. Um tempo que só aquela senhora vestida de negro e aquele sino que cantava feito passarinho caipira sabiam entender. O segredo da capela, mesmo não sendo revelado por seu Dito, estava nas repetições da vida que habitavam sua boca. Pudera, a vida se repete para que possamos compreendê-la e vivê-la por inteiro. E o Guardião da Capela, como ninguém, sabia disso.


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