Daniel Campos

Imprimir Enviar para amigo
13/04/2008 - O Feitiço de Brasília

Há mais de meio século, um mineiro chegou ao interior de um Brasil desconhecido e, entre o sol e o cerrado, construiu de forma audaciosa e corajosa a nova capital de um país. Não faltou quem o taxasse de maluco e de outros adjetivos, todos sinônimos de loucura. Com o passar dos anos, Brasília não só saiu do papel, como queria Juscelino Kubitschek, mas se tornou patrimônio mundial da humanidade.

Quando todos diziam que o sonho estava terminado, um outro mineiro, tão apaixonado e louco quanto Juscelino (no bom sentido), chega a um dos pontos mais tradicionais de Brasília e começa a reconstrução dessa obra de arte, causando surpresa e emoção. Inspirado por esse contexto, esse texto foi construída na quadra 509 da W3 Sul. É nesse endereço que se encontra o Mercado Municipal de Brasília. Mercado Municipal em Brasília?

Isso mesmo. São quarenta toneladas de ferragem antiga - todas revitalizadas - abrigando bancas de bacalhau, queijo, carnes, pães, verduras, grãos, peixes, temperos variados e outras iguarias, além de um bar de dar água na boca em qualquer um. Entre o mercado e o bar, um coreto. Definitivamente, para além das linhas mágicas de Niemayer e Lucio Costa surge um feitiço. Aliás, surgiu um feitiço do Jorge ou seria um Jorge do feitiço? Muitos chegaram a Brasília em busca de aventura, de status, de dinheiro, de terra, de cargo. Jorge chegou por amor.

O amor

Em pleno regime militar, dois adolescentes se conhecem nas gerais das Minas. Na época, Denise tinha 15 anos. Jorge, 18. A paixão foi maior que tudo. Mas havia um empecilho para a concretização desse amor: Denise morava em Brasília. E Jorge era apaixonado demais para amar distante. Com a morte prematura de seu pai, Jorge começou a lecionar para ajudar nas despesas da faculdade. Além de mergulharem no trabalho, ele e seus cinco irmãos contaram com a ajuda de um tio paterno para terminarem os estudos.

O filho de pais comerciantes de tecidos e calçados, com muito esforço e determinação, formou-se em Sociologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora, em 1984. E não foi uma formatura qualquer, posto que aquele coração de estudante havia de cuidar da vida, havia de cuidar do mundo, havia de cuidar do amor. Em 1985, Jorge mudou-se para Brasília (1985) e começou a trabalhar na Fundação Educacional do Distrito Federal. Depois, foi contratado pela Faculdade Católica.

Quando a vida começava a pavimentar sua estrada rumo a uma carreira acadêmica, surgiu um convite de um dos filhos daquele tio que o ajudou a completar os estudos. Esse primo era agrônomo e tinha um restaurante onde Jorge passava a noite, depois de dar aula em Taguatinga, para comer uma pizza. Mais do que cliente, o primo queria Jorge como sócio. O sociólogo tentou argumentar que lecionava, que não tinha experiência, que lhe faltava tempo, mas de nada adiantou. Em 1987, como resultado dessa parceria, surgiu o Gordeixo?s da 306 norte.

Já dizia Guimarães Rosa que o real não está na partida nem na chegada, ele se dispõe no meio da travessia. E o real se concretizava na vida de Jorge em 1989, quando uma loja vazia na quadra 306 norte fez com que Jorge semeasse um novo futuro. Entre sonho e realidade, Jorge inaugura o Feitiço Mineiro. Um restaurante de comida regional, com gosto, cheiro e cara de Minas Gerais. O tempero falava mais alto em sua vida e em 1988, ele deixou a Católica e em 1993, a Fundação Educacional.

Não é a toa que o professor dono das casas gastronômicas mais badaladas de Brasília é uma espécie de JK. Empreendedor e apaixonado, ele constrói uma nova capital no meio do bucolismo do cerrado. Uma capital do sabor. Seja o sabor da comida ou, da boemia ou, da literatura ou, da música ou das conversas que povoam seus lares. Afinal, aquelas casas com toques tão particulares são mais do que bares.

Feitiço e luta

Ao longo desses 19 anos, o Feitiço Mineiro foi palco de mais de cinco mil shows e de mais de sete mil artistas. "Costumo dizer que o sucesso do Feitiço se deve aos três eixos que o movem: a culinária, a música e a literatura", teoriza o proprietário de restaurantes, cafés, bares e do Mercado Municipal. "Jorge do Feitiço" é mais do que um apelido, é a mais que completa tradução de sua alma. Afinal, de certa forma, são esses três eixos que governam o poeta-empresário. Jorge pratica uma culinária honesta, contribui significativamente para a cultura e tem um ideal permanente de luta por justiça social.

"O Brasil tem uma desigualdade social ainda muito grande. Sem dúvida, a distribuição de renda é o melhor caminho para combater não só a miséria, como a violência em si". Mesmo sendo empresário bem sucedido, Jorge continua o mesmo militante que lutou no movimento estudantil, que fez campanha pela anistia, que participou das Diretas Já, que ajudou na reconstrução da UNE, que colaborou para a fundação do Partido dos Trabalhadores, que batalhou ao lado do Sindicato dos Professores, chegando a ser demitido por greve em busca da conquista e garantia de direitos. "Todo cidadão tem direito de ter uma posição política", defende Jorge.

"Eu vou morrer de esquerda. Mais do que isso, hei de morrer como humanista. Tenho a consciência de que como cidadão, eu preciso participar da construção da nação. Em toda democracia precisam existir partidos, sindicatos, associações para que o país não fique na mão de salvadores da pátria. O Brasil é um exemplo para o mundo. Depois de sofrer vários golpes, de passar pelos anos de chumbo da ditadura, ele consolida, a cada dia, seu processo democrático. O Executivo, o Legislativo e o Judiciário vêm buscando seu caminho. Vivemos uma reorganização democrática no Brasil. A gente precisa participar nem que seja de uma fatia deste momento de construção democrática por qual está passando nosso país".

Integração social e cultural

O sonho daquele mineiro de olhar determinado poderia ser o de dobrar seu número de bares, ter lucros recordes, conquistar prêmios. Mas seu ideal é outro. "Meu sonho é ter um país mais justo, mais integrado. É preciso olhar um pouco mais para o interior do Brasil. Nosso modelo de colonização foi litorâneo. Por isso, hoje, o interior carece de uma política mais distributiva. Também sonho com uma escola e uma saúde pública de qualidade e que cada brasileiro tenha um café de manhã decente em sua casa".

Jorge é enfático ao afirmar que sua bagagem política ajudou na sua formação empresarial. "Eu procuro ser um empresário honesto, pago em dia meus impostos, trato meus funcionários de forma humana, incentivo a cultura... isso para mim já é uma maneira de contribuir politicamente. O partidarismo é importante nessa fase de consolidação da democracia e dos direitos, mas é momentâneo. Há uma política muito maior fora dos partidos".

Outro ponto ressaltado por Jorge é que suas 10 casas não fazem nenhuma discriminação entre os militantes de um ou outro partido. "Sei separar a vida pessoal da empresarial. Os meus bares estão abertos a pessoas de todas as ideologias, raças, credos, sexos, idades". Isso é o cimento que dá liga a perfeita integração de suas casas com a cidade. "Em cada casa busco colocar um nome para dar identidade a ela. Boêmio não gosta de ver seu bar do coração virando bar 1, 2, 3... tampouco tendo filial em shopping". Cada bar, ou melhor, cada "filho" de Jorge Ferreira tem uma alma diferenciada. Para testemunhar essa diversidade, basta observarmos o que diz o criador desse universo gastronômico:

"Para quem quer comida regional, basta dar uma chegadinha no Feitiço Mineiro. Já se a opção for um bom bacalhau, o melhor local é o Bar do Mercado. Para os amantes de um Choop de qualidade, aconselho o Bar Brasília. Se a pedida for um almoço mais rápido e leve, o endereço certo é o Monumental. Para quem gosta do clima de boteco carioca, o Armazém do Ferreira é destino garantido. Para os românticos, indico o Gordeixo?s e para quem quer tomar um choop na casa de um amigo, o Brahma Express. Agora, se quiser comprar um artigo de qualidade ou levar uma lembrança de Brasília, basta ir ao Mercado Municipal".

Um reencontro com o projeto original

Era uma vez um ponto de muita violência, prostituição, droga e abandono e um empresário doido sem nenhum tostão do governo apostando todas suas fichas naquele lugar. Esses ingredientes, escolhidos a dedo pelo próprio Jorge, tinham tudo para desandar a receita, mas resultaram num prato saborosíssimo. Um ano e quatro meses depois, esse lugar de 1.200 metros quadrados, inspirado nos mercados franceses, com grades, vitrais, portões e arcos com mais de cem anos de idade, vindos até mesmo da Inglaterra, virou ponto cultural.

"O mercado é a prova de que a W3 não morreu. O projeto traz alegria para a cidade. Faltou isso no projeto original de Brasília. Todas as cidades grandes tiveram seus mercados, que hoje são atrações turísticas. Brasília agora tem seu mercado, em versão menor do que em muitas capitais, mas com a mesma essência e carisma". Aliás, carisma é uma característica que o mercado herdou do dono, que coloca a convivência em primeiro lugar.

"Um dedinho mais para a direita". É assim que aquele mineiro de Cruzilha, vestindo calça jeans e camisa de mangas curtas, coordena, com todo cuidado e carinho, o afixamento de um quadro de São Jorge em uma das paredes do Bar do Mercado. Além deste, que foi presente de um de seus milhões de amigos, outros dois quadros do santo guerreiro enfeitam o local. O homem que se define ateu, além dos quadros, tem diversas imagens do santo que, segundo ele, é o patrono dos boêmios.

Enquanto observo o incremento da decoração que lembra os tradicionais bares do século passado, com garrafas expostas em prateleiras, azulejos brancos e mesas de madeira, degusto uma porção de queijo coalho no formato de tirinhas. Mas isso é só o aperitivo para um prato com arroz, ovos, banana a milanesa, bisteca suína e tutu de feijão com costelinha de porco e couve desfiada que viria logo a seguir. Só podia ser brincadeira do destino. Um mineiro nato oferecendo um tutu a paulista a um jornalista paulistano. Essa simplicidade, essa acolhida, essa receptividade são feitiços difíceis de encontrar hoje em dia, mas que remetem àquela Brasília do projeto original.

Brasília é arte

Mesmo sem convites impressos, a inauguração do Mercado Municipal contou com mais de duas mil pessoas, Hino Nacional ao som do Liga Tripa (um grupo que já virou folclore em Brasília) e presença de ilustres, como Ziraldo e Jaguar. Embora seja motivo para muita emoção, isso não é de causar espanto, sabendo que foi pelas mãos de Jorge que, 42 anos depois da inauguração da nova capital, surgiu um bar com nome de Brasília. Hoje, o Bar Brasília talvez seja a casa mais premiada do país. Por falar em prêmios, Jorge já conseguiu o feito de alcançar cinco primeiros lugares no ranking do guia gastronômico da revista Veja em um só ano. Quer um bocadinho mais?

Pois bem, um dos momentos inesquecíveis da vida do sociólogo-do-sabor aconteceu no Feitiço Mineiro. Foi lá que um dos maiores violinistas do mundo, Baden Powell, realizou seu último show no Brasil. O parceiro de Vinícius em canções como Samba da Benção escolheu o Feitiço para deixar o último fio de sua voz. Com um pouco de sensibilidade é possível escutar ecos de seu violão passeando por aquelas janelas mineirinhas do Feitiço, assim como versos das vozes de Monarco, Francis Hime, dona Ivone Lara, Lô Borges, Arlindo Cruz e tantos outros bambas que passaram por ali.

"Isso tudo é furto do amor que tenho por Brasília. É uma interação forte, emocionada, de alma de com essa cidade. Fiz tudo sem nenhuma intenção senão por amor". Tamanha sintonia rendeu a Jorge o título de cidadão Honorário de Brasília, que está pregado na parede do Feitiço Mineiro. "Orgulho-me muito deste título e também da Comenda JK que recebi da Universidade Federal de Juiz de Fora oferecida aos ex-alunos que se destacaram".

Viver valeu

Antes de acabar este texto, cabe uma pergunta: Quem é o Jorge Ferreira pelo próprio Jorge? "Um eterno louco, otimista por natureza, muito amigo dos meus amigos, um cara que gosta de trabalhar e de conviver com a família". Para preservar essa identidade, Jorge dá a receita: "Eu almoço todos os dias em meus restaurantes. Durante a noite, troco o jantar pelo choop, que já é um alimento. Mais do que estar alimentado pela cevada e pelo lúpulo, isso evita que eu vá ao psicólogo, ao psiquiatra, porque choop possibilita uma convivência com amigos, conversas e desabafos. Além de ser uma bebida saudável, o choop evita que eu coma besteira e caia em depressão. É claro que ele deixa a barriga um pouco saliente, mas nada que uma boa caminhada no Parque da Cidade não resolva".

É esse mesmo Jorge brincalhão e descontraído, que se emociona ao dizer "eu me tornei empresário e me casei em Brasília, mas marquei para sempre meu vínculo com essa cidade quando nasceu o primeiro de meus três filhos". E continua: "A transformação social é uma utopia e nem sempre utopia se realiza plenamente. Mas se conseguir ao menos preservar meus amigos, minha família e meu trabalho eu terei a certeza de que valeu a pena ter vivido".


Comentários

Nenhum comentário.


Escreva um comentário

Participe de um diálogo comigo e com outros leitores. Não faça comentários que não tenham relação com este texto ou que contenha conteúdo calunioso, difamatório, injurioso, racista, de incitação à violência ou a qualquer ilegalidade. Eu me resguardo no direito de remover comentários que não respeitem isto.
Agradeço sua participação e colaboração.

voltar