Daniel Campos

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11/10/2009 - O destino dá voltas

Mesmo a contragosto, ela saiu pelas ruas levando apenas um pouco de si na bolsa. Queria ter uma bagagem maior, mas o tempo lhe tirou esse prazer. E foi assim, mais leve do que pretendia sair, que saiu pelas ruas da solidão. Adepta de barras de cereal e de um mundo natural, ela não tinha sequer um pedaço de pão para marcar seu caminho. Além dos cereais e de uma maçã, trazia uma lixa de unha, uma folha de jornal, um perfume, um espelho, uma caixinha de maquiagem, um envelope de remédio pra dor de cabeça e um batom. Eram esses seus acessórios para escalar o Everest, para atravessar o Atacama, para chegar ao centro da Terra.

Não disse a ninguém para onde ia nem quando voltaria. Não deixou bilhete algum sobre a cama, tampouco postou uma mensagem na internet. Não deu beijos de despedida nem sequer falou em partida. Olhou sua falta de sorriso no espelho, amarrou uma fitinha do senhor do Bonfim no tornozelo, abriu a porta e saiu acompanhada do silêncio das estrelas. E ninguém lhe disse: será que vou voltar a vê-la? Como quem não tem nada ou ninguém para deixar, ela partiu sem olhar pra trás. Tinha passos firmes e frenéticos. Seja para onde quer que fosse, tinha pressa.

Caminhou durante horas. Ao longo da estrada foi se despindo ainda mais. Sem qualquer apego, foi deixando relógios, celulares e dispositivos de som. Não queria saber o tempo. Não queria saber notícias. Queria caminhar ouvindo apenas o som que vinha de dentro. Seus pulmões já respiravam ofegantes. Seus pensamentos gritavam esfuziantes. E seu coração batia feito um tambor. Soltou os cabelos. Chorou engasgada diante dos últimos apelos. Entrou por uma trilha de mata. Queria se perder para se achar. Rodou, rodou, rodou até ficar tonta e cair.

Seu corpo quente deitou na relva fria e permaneceu ali. Sem forças ou vontade para se levantar. Porém, não era preciso. Havia chegado onde queria: na beira de água corrente. Ali, ela emudeceu. Ali, ela tremeu. Ali, sem mexer os lábios, ela invocou seus santos, seus orixás. Ali, ela se maquiou. Ali, ela esconjurou quem ama e quem amou. Ali, ela se descabelou. Ali, ela se culpou e se desculpou. Ali, ela dobrou aquele papel que trazia na bolsa até virar um barco. Ali, ela se jogou no rio como flecha cuspida de arco. Ali, ela se descarregou. Ali, ela tirou do dedo uma aliança. Ali, ela dançou e voltou a ser criança.

Sem dizer uma só palavra, ela colocou a aliança no barco e o ofertou ao rio. Iara, a mãe d’água, entendeu o recado e lhe prometeu levar aquele amor para águas profundas. Sem pensar, saiu do riacho e correu mata acima. Quanto mais longe daquele anel, mais longe de tudo o que lhe fazia correr, fugir e se esconder. Na sua cabeça, tinha de correr em sentido oposto ao rio. Por isso, veio leve. Livrou-se ainda dos sapatos. Por ela, passaria o resto de seus dias correndo contra o rumo daquele barco. Quanto maior a distância que conseguisse abrir, maior o esquecimento. No entanto, ela não sabia que assim como seu destino, aquele rio dava voltas e mais voltas.


Comentários

11/10/2009, por Maurício Salgado:

Li seu artigo sobre livros no Noblat, Daniel, e gostei bastante. Sou professor e mestrando em educação, e naturalmente apaixonado por livros. Claro que eu adoro abrir um livro, como um exemplar que adquiri para minha dissertação, de 1874, com aquela poeira e cheiros característicos. Mas é muito interessante a forma como você colocou da consequencia democratizadora que a literatura digital pode ter. Engraçado que percebemos um movimento das editoras muito semelhante ao das gravadoras, de querer negar essa tendência, mas como colocou, isso é inevitável. De qualquer forma, é bom termos cada vez mais gente explorando esse tema, para que a nossa sociedade, as vezes lenta demais em se modificar e perceber as tendências, tome nota dessa revolução na literatura o mais cedo que puder.


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