Daniel Campos

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O desejo entre o byte e a carne

O corpo ainda quente tomba na cama. O sexo tatuado nos lençóis é a prova mais insignificante do que acontecera ali. Ela ainda tem calma o suficiente para tomar um banho com um sabonete esfoliante. Talvez porque quisesse tirar de sua pele qualquer vestígio de outra pele. Talvez porque quisesse ficar bonita para a próxima vítima. Talvez porque quisesse demorar um pouco mais debaixo do chuveiro. Talvez porque não tivesse acontecido nada para se preocupar. Afinal, não é o primeiro e nem seria o último.

Era o terceiro corpo que tombava quente ao seu lado somente naquele ano. Agora, para que esperar tanto se ao digitar o primeiro oi em um site de relacionamentos ela já tinha o final da história na cabeça. Seja como fosse, ela gostava de ficar meses conversando com seus namorados na internet. Dizia de um tudo. Desde assuntos mais banais, como o que tinha almoçado, até confissões mais apimentadas. Fazia daquele laptop o seu mundo. Podia sair para ir a um barzinho, a um parque, a um shooping. Mas saia acompanhada do laptop. Era ele o seu escudo e a sua espada.

O laptop, com sua memória ampliada por um técnico em informática, sabia de todos os detalhes de sua vida. Eram tantos sonhos, tantas fantasias, tantas histórias.... Era ali que ela vivia seus amores digitais, virtuais, surreais, seja lá o nome dado aqueles relacionamentos. E ela não importava em ter seus beijos separados por uma distância que nem ela mesmo sabia qual, e ela não se importava se o namorado se exibia em fotos mentirosos ou se ele a traia com outras. Ela era de um fidelidade ímpar no meio digital. Namorando, não conversava com mais ninguém. E ela se apaixonava mesmo. Chegava a comprar roupas, perfumes, relógios para o namorado. Mas deixava tudo guardado em casa. Havia gavetas e gavetas com presente. Não dava seu telefone, tampouco seu endereço. A única coisa que seus amantes virtuais sabiam era seu nome... Aliás, o nome que queriam que eles soubessem.

Um dia era ana, outro era sônia, outro era júlia. Um dia era formada em medicina, no outro era estudante de filosofia, no outro era atriz, no outro era recepcionista de hotel. Ela não tinha identidade certa, assim como seus namorados. E era isso que a envolvia. E era isso que a seduzia. E era isso que a movia. Passava horas e horas em frente à tela do computador. Na vida real, era estudante. Estudante colegial. Nunca havia namorado alguém da escola, embora tivesse vários pretendentes. Ela não correspondia um milímetro sequer com as pretensões daqueles adolescentes. Aliás, ela não tinha pretensões adolescentes mesmo estando à flor da adolescência.

Os pais achavam estranhos o comportamento da menina, mas jamais sabiam o conteúdo de suas conversas. O laptop era protegido com a mais secreta das senhas e só andava grudado nela. Não se interessava por outro assunto. Mas as preocupações dos pais não iam muito além de simples preocupações. Afinal, eles eram ocupados demais com assuntos do trabalho. E até preferiam que a menina ficasse no computador, ao menos estava segura. Ao menos, pensavam que ela estava segura. Além do mais, ela também disfarçava bem. Era discretíssima e a única pessoa que sabia de seus segredos era ela mesmo.

Depois de ela estar tomada de paixão, ela cedia aos apelos de quem teclava do outro lado e marcava um encontro. Ela só fazia uma exigência - que o encontro fosse na casa do namorado. E foi assim que ela tocou a campainha da casa do menino que conversava há mais de seis meses. Ele abre a porta e se assusta. Afinal, as fotos dela na rede não eram ela. Mas ele não poderia dizer nada. Ele também não tinha sido tão honesto assim. Ela tinha a idade das ninfas gregas, mas gostava de se passar por mais mais velha. Aliás, gostava de iludir. Ele, mais de 40, no entanto, havia se apresentado virtualmente com um rosto mais jovem. Mas isso não importava.

O que era digital explode em um beijo quente. As mãos que deslizavam pelo teclado, agora deslizam pelos cabelos, pelos pêlos, pelos poros alheios. O combinado era não falar nada. Era um pacto daquela menina. Nada entendível fora da linguagem dos corpos, dos olhares, dos instintos. Suspiros. Gemidos. Gritos. Ele a lambe. Ela o arranha. Ele a morde. Ela o corta. Ele a devora. Ela o fere. Por sobre o corpo daquela adolescente, ele urra. Urra de prazer e urra de dor. Ela finca as unhas em sua garganta e não o solta por nada.

Não se sabia onde aquela menina arrumava tanta força. Quando ele se dá conta, as unhas já estão fincadas em seu tecido. Ela resiste e permanece ali até ter a certeza de seu sucesso. O corpo ainda quente tomba ao seu lado. Liga o chuveiro. O sangue escorre das unhas e tinge o chão. Ainda com a toalha enrolada na cintura, vai à frente do espelho e abre um estojo de maquiagem. Com calma, vai se maquiando. Coloca um prendedor de cabelo cheio de florzinhas no cabelo. Veste sua calça jeans bordada, seu tênis com cordões coloridos, uma camisa com a cara de uma minie envergonhada e liga seu computador. Apaga todos os arquivos recentes. Inventa um outro nome e ali mesmo, ao lado daquele corpo ainda quente, procura uma nova paixão.


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