Daniel Campos

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30/11/2008 - Neve???

Espera aí, estica um pouco mais para esse lado de cá. Quem sabe se eu prender a respiração ou virar um pouco mais o braço esquerdo para oeste. Só mais alguns segundos deste contorcionismo devem bastar. Um, dois, três pulinhos. Pronto. Ficou perfeito, ou quase. Quem mandou comer todas aquelas feijoadas com torresmo. Por pouco essa roupa não entra em mim. Meu Deus, que barriga é essa. Agora só falta colar a barba. Esses pelos fajutos coçam como brotoeja das brabas. E por falar em coceira, essa peruca dá um calor. Calma, Nestor, tudo é questão de costume. Costume? Um sol do tamanho do Maracanã lá fora e eu tendo que andar de luvas, botas e gorro. Eu, reclamo, reclamo, reclamo, mas todo fim de ano me transformo em papai-noel.

Podem não acreditar, mas há algo por trás do dinheiro extra nessa história toda. Além das fotos e dos abraços apertados que ganho, escuto cada coisa. É criança pedindo computador, bicicleta, boneca que fala, nota na escola, emprego pro pai, carrinho de controle-remoto, chocolate... e eu só posso dar algumas balinhas. Ô injustiça. Do mesmo jeito que é bom ver o sorriso das crianças, dá uma tristeza em pensar que a maioria delas vai ser traída pelo papai-noel, que vai ficar sem presentes. Tudo anda tão caro. Um pouco desse sacrifício todo é pelos meus meninos. Sacrifício de vestir essa roupa, de trabalhar a noite, de escutar a zombaria no bar da esquina. Se eu não dobrar o serviço o Natal passa em branco lá em casa. Eu tomo minhas pingas, sou meio bronco, meio esquentado, mas...

Ontem mesmo, quando chegou à hora de tirar a fantasia, fiquei me olhando no espelho do banheiro. Naquele momento, tive certeza de que eu era papai-noel e até me animei para fazer um pedido. Não sei o que me deu, mas comecei a conversar com o espelho. E, não pense ser loucura minha, mas éramos duas pessoas diferentes. Eu ia para um lado e ele para o outro. Eu mexia a mão esquerda e ele fazia movimentos com a direita. E eu não bebo em trabalho. Ali não havia chaminé nem renas nem duendes, porém o mais ilustre morador do Pólo Norte estava bem diante dos meus olhos. E eu, em feitio de menino, comecei a dizer que havia me comportado bem e que o meu pedido era um pouco de (suspense) neve.

O quê? Ao contrário de pedir um carro novo, um apartamento com vista para o mar, uma viagem pelo mundo afora, eu pedi neve? O que aconteceu com você, hein Nestor? Um quarentão querendo virar personagem de desenho natalício. Definitivamente, essa roupa não deve ter lhe feito bem. Onde já se viu pedir um trem deste. E por mais que eu quisesse, não consegui mudar o meu pedido. Só sabia pedir neve, neve, neve... Mas como iria nevar no tropicalismo do Rio de Janeiro? Era mais fácil chover pipoca ou sal grosso do que aqueles flocos gelados sobre a minha cabeça oca. Devo ter sido invadido pelo Espírito de Natal. Não há outra explicação. Diante do pedido, papai-noel ainda disse um hô-hô-hô e me deu umas balinhas antes de partir.

Era melhor lavar o rosto e voltar para casa. Seja nas ruas escuras, nos andaimes, no sacolejo do circular, diante do prato de arroz com feijão que me espera sobre o fogão, na cama ao lado de minha esposa ou no canteiro da obra onde trabalho durante boa parte do dia, a tal figura do papai-noel não me sai da cabeça. Parece idéia fixa. E me encabula o velhinho ser tão parecido comigo. De uma forma ou de outra, fico esperando pela neve. E o sol derrama suores de cimento sobre o corpo daquela construção. E as chuvas de verão derramam granizo sobre o teto de zinco. E meus olhos vão derramando ilusão. Cheguei a contar para minha esposa e pro Zé Antero o que tinha se passado e fizeram foi rir de mim. Só pode estar doido esse aí. Não sei se o que causava mais espanto era acreditar na conversa com o papai-noel ou ter pedido um pouco de neve.

No fim da tarde, começo a viver o meu personagem no shopping, sentado em uma cadeira pomposa e sob uma árvore de natal de seis metros de altura. Embora mergulhado naquela rotina, algo havia mudado. Não sei se fora ou dentro de mim. Troquei os balcões de bar e os campos de futebol pelos céus, esperando a neve chegar. E agora pouco, começou uma farra sem tamanho lá em casa. Fizemos guerra de travesseiro e tudo. E nem havia motivo para isso. E no meio daqueles flocos de espuma, o meu filho caçula disse: olha papai, está nevando. Fui tomado pelo silêncio. Cheguei a escutar as renas e os sinos se perdendo pelo sereno das estrelas polares. E olha que ainda nem é Natal.


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