Daniel Campos

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21/03/2015 - Neuza Maria Mulher Brasileira Alves da Silva

“Se eu sofri discriminação, preconceito, descrédito por ser mulher eu não tomei conhecimento, passei por cima, atropelando, porque eu não me permito sofrer essas coisas”. Colocar-se no papel de vítima, sublimar o sofrimento, sair gritando ou agredindo não é com Neuza Maria Alves da Silva, dona das aspas acima e de uma história que renderia um bom livro com linhas de superação e de como enfrentar as adversidades de cabeça erguida.

Seu nome é escrito no singular, mas Neuza é mulher-plural, afinal são tantas em uma só, assim como tantos são os santos da Bahia de Todos-os-Santos que a deu à luz. São Julianas, Carolinas, Anas, Renatas, Luísas, Veras,..., que se encontram nas lutas ou nos sonhos que fazem de Neuza referência de mulher firme, independente, determinada, destemida, forte, nobre, incansável, observadora, apaixonada, enfim, retrato dinâmico da mulher brasileira.

Além de mulher, Neuza é negra, nordestina, de origem pobre, sem sobrenome tradicional, divorciada e sem pai na certidão de nascimento e na vida... Com tantos rótulos e restrições, poderia ter ficado se lamentando, mas arregaçou as mangas e chegou, até agora, muito mais longe do que ela própria e dona Beatriz, sua mãe e exemplo, poderiam um dia imaginar.

Não faltou quem duvidasse daquela caçula de cinco irmãos, nascida e criada numa comunidade pobre, no bairro do Tororó, em Salvador, famoso pelo dique e pelas lavadeiras, filha de uma guerreira que saiu de Santo Amaro da Purificação para ganhar a vida como empregada doméstica na capital baiana, acolhendo em sua casa colegas que perdiam o emprego e precisavam do conforto de uma palavra amiga ou de um prato de comida.

O alimento servido por dona Beatriz nunca foi só para o corpo; Era uma alimentadora de almas...

Mulher Firme
Quando, no idos de seus onze anos de idade, morando numa avenida de casas minúsculas, onde se via de tudo, um vizinho mais estudado, chegou com família a tiracolo e começou a se engraçar para o lado das meninas da redondeza com algumas brincadeiras estranhas, que resultavam em gravidez. Quando tentou hipnotizar Neuza, não conseguiu. Tentou conquistá-la com elogios, mas ela não cedeu.

Justamente por não dobrá-la, o homem dado a ser mais importante do que era, disparou: “Onde você pensa que vai chegar, sendo pobre, negra e morando num lugar como esse?”. Sem pestanejar aquela menina que vivia descalça, não conhecia o luxo de ganhar bonecas e quando levava merenda para escola era um pão com manteiga e açúcar, respondeu que com certeza ela seria muito melhor do que os filhos dele, pois preferia não ter pai, como de fato não tinha, do que ter um como ele.

A firmeza demonstrada por aquela criança naquele momento foi fundamental durante o curso de sua vida, jamais se permitindo ter preço ou pegar atalhos.

Mulher Independente
Quando não estava brincando de bola de gude, de fura pé, de fazer cozinhado com as amiguinhas com os miúdos do frango, ou ainda entregando trouxas de roupa lavada ou marmitas para a mãe, Neuza estava às voltas com livros e cadernos. Além dos incentivos por parte de dona Beatriz, não demorou a perceber que precisava mostrar que era capaz e isso só seria possível pela estrada da educação.

Sua mãe a orientou a trilhar pelo curso pedagógico para ser diplomada professora do primário, de modo que formada e trabalhando não precisaria de ninguém para sustentá-la. Depois de ter sofrido na pele com os homens, dona Beatriz queria que a filha buscasse um caminho que lhe dessa independência.
No segundo dos três anos do curso, Neuza participou de um trabalho no qual foi escolhida para representar uma advogada de defesa. Seria montado um tribunal de júri para que os alunos avaliassem psicologicamente o comportamento de cada um.

Graças ao trabalho da advogada, o réu foi absolvido por unanimidade. Naquele momento nasceu a paixão de Neuza pelo Direito.

Mulher Determinada
Mesmo sem a base dos alunos que cursaram outras disciplinas, foi aprovada no curso de Direito da Faculdade Federal de Salvador, aliás, sempre estudou em instituições públicas que lhe obrigavam a andar um estirão a pé ate pegar a condução. Como não tinha dinheiro para livros próprios, fazia plantão na biblioteca. Todo sacrifício valeu a pena, pois em 1974 a família de dona Beatriz ganhou seu primeiro diploma universitário.

Depois de estagiar no gabinete do superintendente da Receita Federal, foi contratada pelo departamento jurídico de uma empresa de Consultoria Tributária onde permaneceu por três anos sendo, inclusive, promovida. Só que como nunca aceitou injustiças, após um episódio lamentável em que foi culpada sendo inocente, redigiu uma carta onde dizia que foi demitida indiretamente exigindo o que lhe era de direito. Em pouco tempo foi aprovada em primeiro lugar no concurso para a Rede Ferroviária Federal.

Encontrou o prazer no trabalho, participando de audiências quentes que lhe exigiam mais e mais. Porém, como nem tudo foram flores na vida de Neuza, anos depois, mesmo sendo a melhor advogada da instituição, deu-se conta de que depois de seis anos nunca tinha recebido uma promoção sequer. Sempre tinha nota máxima nos critérios objetivos (pontualidade, assiduidade...) e mínima nos subjetivos, tendo como única e repetida justificativa a falta de colaboração com a chefia.

Chefia essa que nunca lhe mostrou tais relatórios e para a qual ela, após cair doente com essa traição, fez questão de dizer, de forma honesta e com todas as letras, que estava fora espiritualmente da empresa onde conheceu a discriminação às avessas, pois por reconhecerem seu talento, cortaram suas asas para que não ascendesse aos cargos da chefia.

Trabalhava de manhã na Rede Ferroviária, a tarde estava nas audiências na Justiça do Trabalho e entre uma e outra batalha judicial, devorava os livros da biblioteca tendo os editais de concurso à mão. Um ano e meio depois foi aprovada em primeiro lugar no concurso da Justiça do Trabalho. Pouco depois, já trabalhando, recebeu o resultado positivo de outro concurso, dessa vez da Justiça Federal.

Mulher Destemida
Pensando na família, optou pela Justiça Federal, pois assim permaneceria na capital. De fato, permaneceu por mais dezessete anos. Afinal, Neuza não é só de contemplar, mas de entrar de corpo e alma no mar. Foi a fundo, participando de forma ativa de praticamente tudo o que pode na condição de juíza federal, inclusive, sendo uma das responsáveis por tirar o Conselho de Defesa dos Direitos da Mulher do papel.

Depois de ter perdido a mãe, que morreu em seus braços como se dormisse, de ter se separado após cumprir uma linda história de amor de 32 anos com seu primeiro namorado, de ter formado os três filhos, uma em Direito e outros dois em Ciências da Computação, decidiu que era hora de voar mais alto.

Inscreveu-se para a lista tríplice do Tribunal Regional Federal da Primeira Região e seu nome foi prontamente incluído. Disputou a vaga com um juiz do Maranhão e outro de Minas Gerais, nomes até então muito mais fortes politicamente que o dela em solo brasiliense. Faltavam-lhe padrinhos e apoios, mas tinha fartura de fé, força de vontade e fonte de inspiração.

Lembrou-se que quando tinha seus 14 anos, graças ao respeito em torno do nome de sua mãe, integrava um grupo de bairro com a missão de promover um grande São João. No entanto, ela, uma das organizadoras, observou que ficaria de fora da quadrilha. Por mais difícil que fosse enfrentar a realidade, ninguém queria dançar com a única negra do grupo. Sem deixar se abater, foi atrás das professoras e pediu um poema para teatralizar, algo que pudesse fazer só. Vestida de homem, com chapéu e bigode, interpretou “Lá vem o Compadre Pindoba” e os festejos se renderam a ela.

Mulher Nobre
De fato, não era a primeira vez que teria de se virar sozinha e dar a volta por cima. A devota de Santo Antônio foi à luta e com essa postura de não desistir nunca e de sempre dar um jeito de fazer e acontecer, foi nomeada, em 2004, por merecimento, como a primeira desembargadora negra do Brasil. Uma vitória cuja dimensão só é conhecida por quem sabe das pedras e sinuosidades de sua estrada.

Ela comemorou, mas a sua maneira, pois quando criança chegava da escola toda feliz com uma nota dez sua mãe lhe pedia para não fazer estardalhaço, pois poderia machucar aqueles que não tinham conseguido o mesmo sucesso.
Ela aprendeu a nunca pisar em ninguém mesmo com um ou outro querendo pisá-la.

Mulher Forte
Conhecida em todo o Brasil, amada por muitos, de uma só cara, sendo a mesma Neuza, simples e solícita, com o ascensorista ou com o presidente do tribunal, ainda precisa escutar de um e outro que ela faz tipo. É motivo de inveja, ciúme, preconceito...

Certa vez, já como juíza encontrou em um restaurante bem conceituado em Salvador uma colega que vivia tomando cafezinho em seu gabinete. Foi até ela, mas a tal mulher fingiu não a conhecer. Em outra oportunidade, no Palácio do Planalto, um funcionário negro não liberou sua entrada por não acreditar que aquela negra de sotaque baiano carregado era juíza federal. Também deixou de receber convites para alguns eventos sociais e foi isolada em outros. Já teve caso de entrarem em seu gabinete lhe perguntando: “cadê a juíza?”.

Nem esses nem outros episódios do tipo foram capazes de tirar Neuza do seu caminho. Podia desmoronar por dentro, mas jamais deu a quem fez pouco dela o gostinho de ver alguma lágrima ou qualquer abatimento de sua parte. Foi essa a fórmula encontrada para driblar o preconceito, quase sempre velado. Diante de uma situação dessas, simplesmente ignora quem o comete demonstrando uma força capaz de anular o ataque dos carcarás.

Em dez anos de TRF-1, nove deles julgando na segunda turma da primeira sessão, às voltas com questões previdenciárias e que envolvem o servidor público, ganhou a alcunha de Neuza dos Pobres, por sempre defender os menos favorecidos. Esse é apenas um dos tantos apelidos que traduzem a personalidade daquela mulher cujo sorriso colore a sisudez do Judiciário como flor raiada no meio do sertão.

Mulher Incansável
Eleita vice-presidente de um dos tribunais mais importantes do País, cujo volume de processos é de botar medo em muito juiz, a filha de dona Beatriz esbanja serenidade em seu gabinete.

Cercada pelas fotos dos filhos, premiações e homenagens, imagens sacras devidamente colocadas em um altar e da bandeira da Bahia, afirma que não se arrepende de nada. Ela não mede o sucesso pelo acúmulo de bens ou prestígio, mas pelo caminho percorrido. E ao olhar para trás, seus olhos brilham e a voz embarga, pois são 64 anos muito sofridos, mas muito bem vividos.

Vestindo um tailleur rosa, e anéis e brincos com pedras da mesma cor, caminha em direção a pilhas de processos, segundo ela, seus grandes companheiros em dias e noites sem aquela vizinhança característica de Salvador.

Dali da janela da vice-presidência não sente o cheiro do mar que tanto lhe falta, mas sente o cheiro da Justiça por fazer e isso lhe anima a continuar dando ramas, frutos e florações. Como diz seu poeta predileto, Augusto dos Anjos, “a esperança não murcha”... E Neuza, como mulher brasileira, não se cansa de ter esperança...

Mulher Observadora
Seu gabinete está sempre de portas abertas para receber aqueles que lhe pedem conselhos técnicos ou pessoais. Uma espécie de confessionário onde aquela desembargadora que faz questão de não ser censora da conduta de ninguém ou de se colocar em pedestal algum dá mostras de generosidade, partilhando sementes que lhe foram dadas por sua mãe.

Sementes como a de que independentemente dos estudos, viagens ou experiências que se possa acumular, sempre é necessário parar e observar a vida.

Observadora, Neuza enxergou que jamais poderia se fazer de frágil na magistratura, pois embora tal palavra seja feminina seu tom é masculino. Para ela, o magistrado não tem sexo, mas uma missão comum – construir a Justiça. No entanto, tem absoluta certeza de que se não tivesse maturidade suficiente para impor uma postura distante da estereotipada fragilidade feminina teria sido reduzida a pó.

Mulher Apaixonada
A palavra graúna no Nordeste pode tanto designar uma ave negra bastante melodiosa, uma das primeiras a iniciar os trabalhos da cantoria matinal, quanto uma árvore bastante firme, difícil de ser tombada, também conhecida como Jacarandá-da-bahia. Dentre tantas alcunhas, Graúna também lhe cai bem, pois mesmo tendo raízes bastante sólidas, Neuza não se faz de rogada ao se lançar ao próximo voo.

A essa altura do campeonato, Neuza quer permanecer naquilo que acredita, apaixonada pela vida vivendo intensamente suas causas e ideais.

Perguntada sobre o futuro, a Rainha Midas, a Thêmis Arretada, a Pioneira, a Desbravadora, a Lutadora, a Vencedora, a Guerreira, a Neuza dos Pobres, que segue independentemente das dificuldades do caminho, literalmente sem tomar conhecimento do que se opõe ao seu curso, brada com delicadeza: “Vamos em frente”.

Observação do autor: Homenagem à desembargadora do TRF1 Neuza Maria Alves da Silva, educadora e primeira desembargadora negra do Brasil.


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