Daniel Campos

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Nem mais nem menos

Sem quaisquer cumprimentos, ela vem, como vinha todos os dias, e senta-se na mesa de sempre. Nem perto da porta, nem perto dos pratos quentes, nem perto da parede, nem perto do banheiro, nem perto do balcão de frios, nem perto do garçom, nem perto da cozinha. Em seus traços, um quê de uma Itália abrasileirada. Em seu prato raso, um pouco de alface e cenoura. Como se tivesse um combinado com o garçom, ao sentar-se um refrigerante, que tentava imitar o gosto de uva, já estava borbulhando em seu copo. Emburrada, come da forma mais lenta possível. Parece não ter mais nada para fazer em seu horário de almoço senão mastigar os ponteiros do relógio.

Depois da salada básica, ignora as sugestões do dia e pede um contrafilé bem passado. Sua previsibilidade chegava a irritar. Todo dia a mesma comida, os mesmos passos, as mesmas expressões, as mesmas conversas, os mesmos olhares. Os mesmos olhares medrosos de sempre. Até a roupa era a mesma. Uma calça preta e uma blusa amarela. Tudo muito despojado. Aliás, ela era casual. Esteticamente e emocionalmente casual.

Uma assalariada que trabalhava das 8h às 18h, com duas horas de almoço. Uma mulher que mais dia menos dia estaria com dois ou três filhos ao seu redor. Perderia a cintura. E se afogaria nos medos dos próprios olhos. Namorava desde cedo o mesmo namorado. A aliança no dedo já devia ter deixado um sinal, uma marca, um destino em seu dedo. Ela já era programada. Havia mulheres sujeitas ao estado de espírito, mulheres de por enquanto, mulheres de surpresas, mas ela era uma mulher mapeada. Uma mulher que não provocava esperas. Pois era certo que vinha. Uma mulher que não possibilitava aproximações. Até as distâncias eram as mesmas. E isso era fundamental para não estragar seu script.

Uma mulher que não provocava erros, senão o erro de ser igual ao dia de ontem, anteontem, transanteontem e, por que não, amanhã. Talvez quando fosse falar aos filhos, netos, bisnetos, ela contaria a mesma história de uma princesa que nunca ultrapassou os limites do reino, que se casou e foi feliz para sempre. Corria o risco de contar sempre a mesma história, com o mesmo sol, a mesma estrada, os mesmos dragões, o mesmo idioma, a mesma princesa, a mesma ilusão de felicidade ou a mesma felicidade de ilusão. Ela era uma continuação, um moto-contínuo. Mas as crianças teriam de pegar no sono antes de lhe perguntarem coisas novas.

Ela era daquela que iria esperar o marido todo dia do mesmo jeito. Com a mesma novidade. Com o mesmo beijo. Com o mesmo perfume. Veria os mesmos programas de televisão. Compraria o contrafilé no mesmo açougue. Teria sempre a mesma raça de cachorro. Faria amor sem variações de posição ou horário. Teria os mesmos ciúmes. E talvez tudo isso fosse culpa sua. Não buscava, não reagia, não tentava... Apenas continuava. Sua existência parecia um simples capricho de um deus entediado. As revoluções dentro de si eram repetidas com a exatidão do ciclo menstrual. Tinha lá a sua beleza, mas não era nem mais nem menos, era aquilo. E aquilo era ela.


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