Daniel Campos

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Mulher, chuva e café

Chovia. Mais um desses fins de tarde em que não se sabe se a cor do céu é negra por causa do prenúncio da noite ou por causa da chuva. As nuvens grossas impediam a lua de decifrar a charada. Tirante às dúvidas, chovia. Não aquela chuva de pancadas fortes que, de tão fortes, só acontece de repente. Chuva esta que precisava tomar fôlego para chover e, entre essas pausas, fazia com que sombrinhas se abrissem e tão logo se fechassem com ares de coreografia.

Mas, desta vez, era uma chuva leve que, de tão leve, fazia-se constante. Chuva que sufocava a poeira e deliciava a terra. Enquanto chovia esquentavam água nas chaleiras para o café. Chuva e café, um casamento feliz. E o cheiro do café misturado ao cheiro da chuva saía pelos ventos. Ventos que, como a chuva, caiam leves. O vento trazia o perfume da chuva e ganhava o perfume do café. Talvez, depois que se findasse a chuva, os aromas seriam outros. Não era para menos, a primavera estava a caminho. Mas isso ficaria para depois, por enquanto chovia.

Aquele céu pincelado tinha traços modernistas, clássicos, românticos. Bastava saber olhá-lo. Os olhos se perdiam naquela magia. Uma magia que parecia ter escapado de mãos feiticeiras. A exemplo dos feitiços era simplesmente impossível entender como acontecia aquilo tudo. Enquanto o ventre do céu não cicatrizava (fora rasgado pelas unhas de alguma mulher) vivia-se aquele novo cenário. Para além dos entendimentos, vivia-se. Vivia-se a chuva sem pretensões químicas ou físicas. Vivia-se, unicamente, com pretensões poéticas.

Enquanto alguns corriam para debaixo das cobertas e ficavam pensando na criatura amada, outros buscavam janelas, portas, varandas, sacadas, enfim, um local qualquer onde se pudesse ver aquele mundo mais de perto. Mesmo que não esperassem ninguém, ficavam ali, quietos, numa espera sem razão de ser. Um culto sem altar.

A rua banhada na leveza de enxurradas e poças d'água. A grama do jardim mudava de cor, ou melhor, ganhava cor. Os pingos se suicidavam com a promessa do fim de uma solidão em queda livre. Vinham do caos daquelas nuvens, caíam separados e ao se desmancharem no chão encontravam-se e seguiam juntos. Seja por onde quer que fossem, seguiam juntos.

Chovia e ela vinha com os pés descalços. Os cabelos longos e molhados. Vinha e, tal a chuva, vinha leve. Vinha com os braços soltos na chuva. A chuva chovendo em seus seios. A chuva chovendo em suas costas. A chuva chovendo em sua boca. Boca que cantava baixinho. Tão baixinho que o vento, curioso e safo, roubava a canção e ia ouvir lá longe. Uma música que eu já havia escutado em algum lugar, mas não me lembrava onde nem por que, mas... Vinha despida pela chuva. Vinha com a calma da chuva, sem trovões ou relâmpagos. Vinha com os pés descalços (carregava os sapatos em uma das mãos). A chuva apagava os rastros. A chuva parecia ter caído só para ela passar. Vinha sem encontros marcados e, como o cheiro do café, sumia sem sumir naquela poesia molhada. Chovia.


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