Daniel Campos

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Mulher anelada

Entardecia e algo reluzente brilhava junto à sarjeta. Ali onde a chuva se faz enxurrada. Podia seguir sem me importar com aquilo, mas a curiosidade me fazia ir ao encontro do desconhecido. Para minha surpresa, tinha nas mãos, um anel dourado (certamente de ouro, não me parecia bijuteria), com três pedras brancas meio retangulares incrustadas. Uma bela jóia. Quem a perdera, no mínimo, devia estar bebendo um drinque amargo de angústia.

Mas como o anel fora parar ali? Não havia nenhuma joalheria por perto, ninguém cabisbaixo a sua procura. Podia ser um anel de estimação, um anel de noivado, um anel ainda não usado. Ela poderia estar aos prantos, pela perda, pelo dês-compromisso, pelo não presente. Pensando melhor, descarto essa última possibilidade, o anel parecia conter um "qu" de mulher. Podia ter caído levemente do dedo feminino ou podia ter sido jogado contra o chão com todo ódio. Nos dois casos, inconsciente ou consciente da perda, a mulher seguiu sozinha. Como uma espécie de cinderela. Mas será que ela fugiu antes de alguma meia noite? Será que sua carruagem se transformou em abóbora? Será que seu príncipe encantado não achou o anel?

A mulher daquele anel devia ser, na menor das hipóteses, parecida com o anel. O anel sempre toma a forma da mulher. Seria arrojada como o design da jóia? Seria bruta como as pedras? Seria delicada como o brilho dos brilhantes? Talvez o brilho dos olhos da mulher ficou nas pedras. Será que ela se foi cega? Ela devia ser frágil porque as mulheres que se escondem atrás dos anéis são frágeis. Possuiria as mãos perfeitas, com dedos macios, um pouco longos, e unhas sem esmaltes, pelo fato de não combinarem com o anel. A mulher devia ser discreta. Embora chamasse atenção, a jóia era sóbria. Não devia usar mais anéis e esse já fazia parte do seu corpo. Ao vê-la o encontravam e vice-versa. Os dois eram comuns entre si. Surpresa seria vê-la sem o anel. Talvez ela estranhe o dedo vazio, solitário, despojado. Não sei se chora ou se sente aliviada.

Aquele velho ditado popular de consolo de que se vão os anéis, mas ficam os dedos, não será aplicado nesse caso. No anel, eu sentia seus dedos, sua mão (um pouco fria), seu braço, seu ombro, seu pescoço, sua face inquieta e até seus olhos de pedra.

O anel era estranho, enigmático, trágico. E eu amava a mulher que o deixara ali, sem sequer vê-la pessoalmente. Talvez ela o deixara de propósito para que eu o encontrasse. Quanto mais olhava o anel, mais sabia dela. Sem pressa, sentei-me na sarjeta na espera da forma feminina do anel aparecer. Passou tarde, noite, madrugada, alvorada e até o crepúsculo, mas eu permanecia ali. Talvez ela não venha hoje, nem amanhã, tampouco depois de amanhã... Mas ela virá. E quando chegar, eu irei reconhecê-la sem mais apresentações. E até lá, quem sabe, eu a chamarei pelo nome.


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