Daniel Campos

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10/05/2008 - Mendigos, doutores e Nerudas

Dormia no concreto barulhento dos viadutos, no ladrilho da estação do metrô, nas pedras da calçada que se espalham em feitio de ondas pelo caminho sem destino. Ele se chama doutor Raul de Medeiros Pontes de Alcântara Machado. Doutor? Medeiros Pontes de Alcântara Machado? Os boquiabertos que me desculpem, mas Raul é um dos quase dois por cento de brasileiros que se sentaram nos bancos de um curso superior e acabaram nos bancos da praça.

Foi parar na rua em razão de uma desilusão amorosa. A mulher que tanto amava foi embora sem dizer nada. Quando ele chegou em casa, depois de um dia exaustivo de trabalho no consultório médico, não viu mais as roupas, os perfumes, as jóias dela. Havia partido para sempre. Fez alguns telefonemas, inclusive para a polícia, mas nada. Havia sumido sem deixar rastros. Doutor Raul bebeu garrafas de uísque com pedras de gelo feitas de seu próprio choro. No outro dia, já não foi trabalhar. No outro dia, já não sabia o que fazer. No outro dia, decretou a própria morte.

Aquela casa a lembrava demais. Cada momento, cada sorriso, cada abraço, cada sonho, cada jantar, cada surpresa romântica, cada noite quente de amor... tudo era demais para ele. Sendo assim, decidiu se juntar aos 16 por cento de brasileiros que estão vivendo nas ruas por alguma razão amorosa. Ilusão, meu caro, ilusão. Saiu com a roupa do corpo e aos poucos foi deixando o paletó, a gravata e os sapatos pelo caminho. Tornou-se indigente para ver se esquecia daquela mulher. Mas o amor que nutria por ela era cada vez mais forte e a procurava em cada esquina, em cada carro, em cada lata de lixo.

Passava dias e noites vagando sem rumo, levando consigo apenas um livro de Neruda que ela lhe presenteou em seu último aniversário. E diante das rodas de mendigos, lá estava doutor Raul lendo versos e reversos de amor do poeta chileno. Quem sabe, dentre tantos moradores de rua, o doutor encontrasse uma nova paixão. Talvez só uma paixão arrebatadora o fizesse recomeçar a sua vida. O problema é que a mulher é minoria na rua, isto é, apenas 18 por cento. Mas para ele não importava números, afinal ampla maioria era a saudade que ardia na noite fria. Saudade do que se perdeu. Como dizia Pablo Neruda, "Saudade é solidão acompanhada, é quando o amor ainda não foi embora, mas a amada já..."


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