Daniel Campos

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Mãos

Um exército de mãos marcha. Diariamente, invade as quadras, as calçadas, as praças de pedra e de flor. A cidade é tomada por outra cidade. Uma cidade que não é feita de placas de concreto ou vergalhos de ferro ou baldes de piche... Uma cidade que é feita de mãos. Algumas mãos surgem delicadamente, outras como tapas na cara. Algumas mãos machucam, por ódio ou pena. Mãos com anéis. Mãos com feridas. Mãos brancas. Mãos negras. Mãos sujas. Mãos acostumadas. Mãos pequeninas. Mãos com unhas esmaltadas. Mãos calejadas. Mãos com linhas que dizem a mesma coisa: fome, miséria, violência, medo.

Mãos qualificadas ? profissão pedinte. De pai pra filho. De mãe para filha. Mãos estendidas na calçada. Mãos que, sem pedir licença, invadem a janela do carro. Mãos que atravessam caminhos. Mãos que não sabem o que é trabalho, carteira assinada, décimo terceiro, férias, licença maternidade. Mãos que ganham mais importância do que todo o corpo de quem as leva. Mãos que impõe medo. Mãos que fazem correr. Mãos que dão nojo. Mãos que atiçam o preconceito. Mãos que fazem mudar de direção quem vem de lá.

Mãos que se alimentam de moedas. Mãos do desejo que sucumbe entre a carne e o metal. Mãos em um imenso picadeiro. Mãos que nos fazem sentir um pouco cartomantes. Mãos de leituras tão previsíveis. Mãos que tentam segurar o mundo em migalhas, migalhas, migalhas. Algumas, antes de pedir, fazem malabarismo com facas, tochas de fogo, laranjas, outras pedem com a ajuda de um pedaço de papel, com um texto mal escrito, mas a maioria pede de forma direta, seca, nua.

São mãos que se expõe como se estampassem capas de revista. Mãos proibidas para menores de dezoito anos. Mãos que roubam e são roubadas. Mãos que sangram injustiça. Mãos ferinas. Mãos aflitas. Mãos inocentes. Mãos clandestinas. Mãos rebeldes. Mãos que carregam botões de rosa. Mãos que carregam punhais e revólveres. Mãos que não hesitam em pedir ou em matar. Mãos que devoram e são devoradas. Mãos que povoam de semáforos a setores comerciais, sepulcrais, viscerais. Mãos amputadas de vergonha. Mãos que gritam. Mãos com instinto de sobrevivência. Mãos que não dizem "bom dia", "olá como vai", "adeus".

Mas mãos que repetem exaustivamente um discurso pronto. Eu peço. Ele pede. Nós pedimos. Mãos atrofiadas de promessas fiadas. Mãos que fazem da rua uma religião. Mãos que tentam dizer a qualquer custo que existem. Mãos de esmolas e de nãos. Mãos sem lembranças. Mãos sem futuro. Mãos que vivem a falta de um tempo. Mãos escancaradas. Mãos dominadas e que dominam. Mãos perdidas em suas próprias palmas. Mãos que se rodeiam de gente e solidão.


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