Daniel Campos

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Latidos

O céu num azul sem nuvens. Os ponteiros se preparam para o encontro do meio-dia. Os pés, por mais que se esforcem, não conseguem deixar pegadas na terra batida da rua. Uma terra seca e dura. A ausência da chuva mancha o sapato de poeira. Os matos da encosta numa paisagem que remete a lugares que não aparecem no horário nobre da televisão. E com toda a poeira, com todo o mato, com todo o azul, os pés continuam a caminhada, em silêncio.

Passos e mais passos e a solidão de uma palmeira se esparrama pelo terreno. Conforme a posição do sol, a sombra das folhas alcança uma casa que surge em várias cores, na tentativa de divertir o cenário. Uma morada simples, onde o sol desliza pelo amianto até se acabar nos gestos de um Joaquim que é Antônio que é Pedro que é Raimundo fulano de tal. Um homem que transforma a própria história em gestos.

Os passos não param. Passos que tentam ir além das farpas dos arames. No entanto, só tentam. Os arames abraçam três mil metros quadrados. A casa perde a nitidez ao fundo da paisagem. Os passos teriam que se conformar, mas não iriam passar do portão. Por detrás daquela cerca, um Haras. Mas naquele dia, o único caubói que havia ali apareceu sem cavalo. Seu Joaquim, como a personificação de tantas músicas do gênero, um caubói solitário. Solitário de um tempo que não mais existe.

Histórias. Histórias nem sempre com sabor de conto de fadas, mas com um final que continua a cada dia com uma felicidade possível. Um convite para entrar. Mas depois ele lembrou que não podia me convidar para entrar. Ele era só o caseiro da chácara. Aliás, o seu filho mais velho era o caseiro. Eles moravam com ele de favor. O dono do Haras, um coronel aposentado e apaixonado por cavalos, deixara o casal morar ali em troca de alguns serviços. E serviço ali era o que não faltava.

Seu Joaquim, cinqüenta e mais alguns anos, um mineiro criado no sul, no norte, no centro de um país de ponta-cabeça. Ainda jovem casou-se com uma Maria dessas que aparecem do nada e se tornam Maria Aparecida. E juntos, passaram dez anos em um circo. Moraram dentro de uma carreta que servia para carregar as malas dos artistas. O melhor lugar que já moraram foi no galpão nos fundos de uma oficina onde trabalhou como lavador de peças. Agora, comemoravam três anos de uma casa como aquelas que as crianças desenham com lápis de cor nas folhas em branco na pré-escola.

Com uma camisa negra, toda furadinha, seu Joaquim folheia suas histórias. Palavras duras. Nunca foi à escola, mas aprendeu a ler com a ajuda de um amigo, através de um livro de terceiro ano. Tinha dezessete anos quando conheceu as letras. O trabalho sempre falou mais alto em sua vida. Trabalhava desde os sete anos. Era apenas mais um brasileiro sem oportunidades. Palavras doídas despem o cotidiano. Passa duas horas e quarenta e seis minutos por dia dentro de um ônibus. Começa o expediente às sete da manhã e termina às sete da noite. Ganha um salário mínimo mais uma cesta básica. Trabalha como serralheiro artístico na produção de brinquedos para parque de diversão. Pagavam uma fortuna pelo brinquedo que ele fazia. Mas ele nem podia assinar os brinquedos, era só o empregado de uma empresa famosa. Definitivamente, o contraste não era só por conta das cores da palmeira que recortava o azul sem nuvens.

Na chácara, sua mulher acorda às cinco horas da manhã e começa a preparar o almoço. Se preciso, encarrega-se dos serviços de pedreiro, encanador e eletricista. Quer viver aquele ambiente de maneira intensa. Durante o tempo de folga, cavalga. Dois cavalos. Boneca e Coronel. Também brinca com Shenna, uma gata que perambula com preguiça pelo verde. Uma mulher das pedras da cidade em busca das coisas do campo.

Enquanto seu Joaquim contava sobre seu neto que vai nascer em agosto, um carro atropela uma de suas cadelas. Priscila. Embora o pânico se instalasse nos olhos do casal, não aconteceu nada de mais grave. Para Aparecida, o susto e a dor valeriam de lição para que a cachorra aprendesse a não viver no meio da rua. E por falar em neto, uma de suas filhas chega com um vaso de flores amarelas para a mãe. Afinal, era véspera de dia das mães. Agora, o azul sem nuvens e o amarelo sem primavera. Tempo para se falar dos filhos. Todos alfabetizados, um orgulho para os pais.

Maria Aparecida escorrega a mão por sobre a barriga da filha. O primeiro neto. A mãe, a filha e o ?neto? permanecem nas demonstrações de afeto. Seu Joaquim continua a falar da realidade. Das dores da realidade. Sofre de tendinite nos dois braços. Como não tem dinheiro para comprar todos os remédios, precisa apelar para os postos de saúde. Sente na carne todo o abandono do governo. Sente saudades do circo. A fantasia do circo. O mundo dos palhaços, dos trapezistas, dos equilibristas. Um pouco dessa fantasia ficou nos olhos que se quebram como ondas nos canteiros da vida.

Despedidas. Deixar para trás toda a fantasia do circo nos olhos de seu Joaquim. Um homem que explica as suas histórias com o dedo na terra. Um homem que se confirma nos olhos da mulher. Um homem que se entrega à barriga da filha. Um homem que continua a vida e que sabe o preço do sonho.

Final de conversa. Os passos voltam à rua. A terra batida, o azul do céu, a poeira, o sol quente. Mesmo com os passos longínquos, ainda escuto o latido de Nina, de Manchinha, de Lidy, de Priscila, de Dianna, de Bethowen, de Moreno e imagina-se que Seu Joaquim esteja com os olhos fixos na solidão da palmeira, enquanto pensa no neto. Os passos se vão longe e ainda escuto o latido de Daiana, de Ranta, de Teley, de Danco, de Ted, de Picra, de Tigrão, de Djohe, de Pusk e imagina-se que Maria Aparecida esteja se refugiando na barriga da filha. Ando e escuto os latidos. Quando os passos se vão ainda mais longe, não consigo mais distinguir mais os sons dos cães e pela primeira vez naquele final de manhã, a vida, entre a terra batida e o azul quente de sol, não tem distinção.


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