Daniel Campos

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Ipê amarelo

Hoje o dia vai amanhecer como outros domingos. Cor de sol, perfume de pão, canto de galo, grito de criança, conversa na esquina... Mas o vento de agosto vai acentuar o que não tem nome, mas que se acostumou a se chamar de saudade. Ah! Como é triste o vento de agosto. Ah! Como dói o vento de agosto. Ah! Como grita o vento de agosto. Como é difícil estar longe quando se é tão perto.

Hoje, a lembrança fica ainda mais forte. Hoje, em tudo há um quê de falta. Falta um abraço, um beijo, um olhar... Mas nessas faltas, tudo se faz presença. Um sabor, um texto, um gesto... Dos detalhes mais simples faz-se o encontro. Hoje, vou ligar aquele radinho de pilha. Hoje, talvez eu faça carne moída. Detalhes... E são tantos encontros no espelho. As imagens se confundem. E é como se nos encontrássemos para além do espelho. Eis a beleza do sentimento. Ele existe para além do físico, do palpável, do concreto.

Hoje, o dia amanhece igual, mas a cor do sol é diferente, o perfume do pão é diferente, o canto do galo é diferente, o grito da criança é diferente, a conversa na esquina é diferente... Hoje, não vou lhe provocar com aquele cheiro de ovo frito no café da manhã. Hoje, não vou dar palpite nas carnes que você vai comprar. Aliás, hoje eu não vou estar na churrasqueira. Hoje, não vou escutar nenhuma piada do vô Antônio. Hoje, não vou escutar nenhum causo do vô Líbio.

Hoje, você não vai me chamar para mostrar nenhuma música recém-descoberta. Hoje, não vou repetir aquela brincadeira de pegar a Kika e fazer ela lhe cumprimentar. Hoje, não vamos discutir política entre as notícias espalhadas pela mesa da cozinha. Hoje, você não vai jogar a chave da porteira do sítio no meu colo. Hoje, a primeira sensação é a de que muitas porteiras ficarão fechadas. No entanto, a sensação verdadeira é a de que muitas porteiras nunca foram fechadas.

Hoje, o dia amanhece e se faz diferente entre tantos acontecimentos previsíveis. Lá no sítio, o vô vai reclamar da carne, a mamãe vai ficar sozinha no comando do almoço, a Kelly vai fazer aquele escândalo de sempre e alguns olhos irão buscar as flores amarelas de um ipê. Por aqui, os ipês estão cobertos de flores. Por maior a solidão entre os galhos dos ipês, eles estão florindo. Um exemplo de força, destino e poesia. A saudade é um ipê amarelo. Entre nós, mais de mil quilômetros de estrada e incontáveis ipês amarelos. A distância faz o sentimento ser mais nu, mais exposto, mais vivo.

Hoje... Hoje é dia de lhe agradecer por todo o amor e cuidado ao longo desses mais de 25 anos. Hoje é dia de lhe agradecer por toda a compreensão, por toda a paciência, por todo o respeito. Muito obrigado por ter me apresentado, mesmo de que de forma involuntária, Tom Jobim, Chico Buarque e Vinícius de Moraes... Muito obrigado por ter me passado o amor que tem pelo mundo das letras. Hoje é dia de lhe agradecer por ter me dado asas e nunca ter podado essas asas. Hoje é dia de lhe agradecer por ter me ensinado tanto. Daqui algum tempo, quando eu tiver um filho ou uma filha, eu vou saber, graças a você, o que é o dia de hoje.

Observação do autor: Texto escrito no dia dos pais de 2005


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