Daniel Campos

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Horário de ilusão

Pega, pega, pega o ladrão! Pega o ladrão! Fui roubado, furtado, assaltado... Dê o nome que quiser a esse crime, o fato é que me roubaram o tempo. Quando acordei, faltava uma hora, faltavam 60 minutos, faltavam 3600 segundos no meu dia, na minha vida, no meu destino... Quantos os beijos que poderiam ter sido semeados e colhidos durante o passar de uma hora e não vingaram? Quantos os versos que poderiam ter sido escritos durante uma hora e foram levados para longe das minhas páginas? Quantos os sorrisos que deixaram de fazer parte da minha boca e dos meus olhos nesse intervalo de tempo? Quantos sabores e perfumes eu deixei de sentir com esse autoritarismo? Quantos os sonhos que caíram assassinados durante essa uma hora? Pode parecer pouco, mas para quem enxerga a vida como uma colcha de retalhos, costurada de detalhe em detalhe, é muito...

A cada segundo, três novas crianças vêem ao mundo. Com o furto desta uma hora, quantas crianças deixaram de nascer? E se uma dessas crianças fosse o adulto predestinado a inventar o mecanismo capaz de reverter o aquecimento global ou a cura do câncer ou, exagerando, se um desses rebentos fosse o novo messias... Quantas vidas, quantos sentimentos, quantos momentos foram abortados ao arrancar esse futuro do nosso presente... Existe a justificativa de que essa uma hora será devolvida daqui a alguns meses... Mas daí já será um novo tempo. Esses 60 minutos que nos tiraram foram perdidos para sempre. Não haverá reparações, juros ou correções monetárias desse tempo roubado. Definitivamente, fomos roubados... E se alguém morrer antes dessa hora ser devolvida? O suposto defunto poderia ter feito tantas coisas que deixou por fazer e até, quiçá, ter sido salvo...

Suposições à parte, a maioria dos brasileiros vive hoje a primeira segunda-feira do horário de verão edição 2007/2008. Os relógios mudaram ainda na madrugada de domingo, mas os efeitos, na prática, começaram hoje. Afinal, domingo é um dia atípico onde se desrespeita, por natureza, os relógios. Mas hoje, segunda-feira, é diferente. Hoje, há alguém que reclama por acordar no escuro. Hoje, há alguém que comemora poder sair do trabalho e ainda aproveitar um happy hour sob a luz do sol. Hoje, há alguém que excomunga o inventor do horário de verão mesmo sem saber seu nome. Hoje, há alguém que caminha de camiseta e tênis sob a noite ensolarada. Hoje, há quem acorda de mau humor e também quem nem desperte. Hoje, há o medo de sair de casa de manhã e há uma suposta segurança ao sair no início da noite. Hoje, há corpos e mentes se desentendendo a ponto de discutir e deixar esfoliações, graves ou superficiais, no ânimo e no temperamento de uma legião de contentes e descontentes. Hoje, segunda-feira de primavera de horário de verão há mais desencontros do que encontros. E nós nascemos para sermos encontros. O que vai contra essa sina causa distúrbios que são visíveis no dia de hoje. Seja na face alheia ou no nosso próprio espelho.

Há uma relação de amor e ódio nessa mudança. A grande questão é: essa polêmica vale à pena? Os médicos advertem: o nosso relógio biológico é alterado abruptamente. Os jornais, as televisões, as rádios nos avisam sobre a mudança de horário, mas o protagonista dessa história não é sequer consultado. E se é avisado, ignora o aviso. Ele? O sol. O nosso astro-rei continua sua peregrinação, no mesmo ritmo, ao redor do mundo em busca da lua. Ele cavalga em seu cavalo em chamas procurando uma lua que mingua e cresce de medo e desejo. Embora os ponteiros dos nossos relógios adulterados se acasalem às 12 horas, o sol do meio-dia não é o sol do meio-dia, mas o das 11 horas... Assim como a lua da meia-noite é falsa. Como ficam as cinderelas? Viram abóboras antes do tempo? Ilusão, ilusão, ilusão...

O exemplo mais gritante dessa ilusão é o da passagem de ano. Logo estaremos fazendo a contagem regressiva para o próximo ano, cumprimentando uns aos outros, desejando votos de feliz ano novo, estourando champanhe, comendo lentinha, contando sementes de romã, pulando sete ondas, porém, em algum lugar, haverá algum deus sarcástico rindo disso tudo. Pudera, estaremos comemorando o nascimento de 2008 faltando ainda uma hora para findar 2007 no relógio da Terra.

O horário de verão tornou-se uma conveniência social. Mas essa tradição está sendo colocada em xeque. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), 40% dos brasileiros sofrem de insônia, e esse distúrbio do sono é gravemente acentuado no período do horário de verão. De acordo com especialistas, a perda de uma hora no sono acarreta irritabilidade pela manhã, dificuldades de concentração e falhas na memória, ou seja, mudanças que prejudicam nossas atividades rotineiras. No Brasil, não existem estatísticas sobre os prejuízos causados pelo desajuste do relógio biológico, mas um estudo da Universidade de British Columbia, EUA, registra que os acidentes de trânsito aumentam 8% no dia seguinte à implantação ao horário de verão, isso porque a desatenção contribui para 90% dos acidentes de trânsito. A preocupação aumenta quando sabemos que morrem 98 pessoas por dia no trânsito brasileiro.

Os próprios estudos do governo apontam uma redução pouco significativa no consumo de energia elétrica, não justificando os aspectos negativos da adoção da medida. Por essas e outras, há projetos tramitando no Congresso pelo fim dessa mudança. Mas por que, com tantas contra-indicações, esse horário implantado nos tempos de Vargas ainda é praticado? Faz parte do discurso dos socialistas de que ele é parte da estratégia de vendas do mercado, tornando-se assim uma tradição de fim de ano. Estudos comprovam: as compras aumentam no horário de verão. E se trabalha mais também, posto que os dias ficam mais longos. Os trabalhadores acordam mais cedo e acabam sendo explorados por mais tempo.

Esse cenário exige uma libertação. Temos de pensar na escravização que o relógio nos proporciona. Somos escravos da nossa rotina, seja do relógio de ponto no nosso trabalho ou da programação da televisão. O bom senso indica que é incômodo sermos banhados pelo sol às oito horas da noite, assim como não é aceitável o galo cantar no escuro nem mesmo acordarmos sem o canto da ave que representa o novo dia. O horário de verão prova a nossa interferência no meio ambiente. Vivemos em um mundo artificial onde a comida não é natural, o bem-estar não é natural, o corpo não é natural, enfim, o tempo não é natural. O horário de verão é um atentado à democracia. A interferência arbitrária do Estado no ritmo natural da vida dos cidadãos deve ser, ao menos, discutida. Atenção: ao adiantarmos o nosso relógio em uma hora, podemos estar antecipando a nossa extinção em uma hora. Ò Terra, mãe Terra, como nós podemos estar em sintonia contigo se nossos relógios estão desajustados.

O governo deveria usar esse autoritarismo todo para voltar os ponteiros em algumas horas, anos, décadas no relógio da ética. Há tanto a se corrigir desde a exploração dos índios pelos portugueses até a explosão do último escândalo lá no Congresso. É muito mais fácil querer adiantar o tempo, prometer coisas futuras, do que voltar ao passado para tentar erguer outro homem, outro país, outro mundo. O relógio deve ser ajustado no ponto zero para começarmos uma nova educação, um novo modo de vida, uma nova civilização: mais consciente e apaixonada. Que este relógio seja simbólico, mas que nossas atitudes sejam concretas. Basta de se iludir por se iludir. Em relação ao horário, vamos acertar nossos relógios com o único tempo que vale a pena ser vivido: o tempo do sentimento.


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