Daniel Campos

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Gafanhotos

As palmas infestam o ambiente como uma epidemia de gafanhotos. As mãos se tornam asas verdes e se batem e se debatem. Não, ela não está no palco de um teatro, na frente de uma sala de aula, na apresentação de um balé. Está em sua casa, diante de um bolo com uma vela acesa.

Aquelas palmas, mais do que aplausos, eram a marcação de uma música que esbofeteava seu rosto. Os algarismos da vela indicavam vinte anos. Muitos diziam 15 e 18 como datas fundamentais, mas nenhuma data lhe doera mais do que os 20 de agora. Legalmente, era o último ano de sua dependência. Mas ela era dependente demais. Seus pais eram como se fossem suas drogas. Encontrava o êxtase nos olhos do pai e a cocaína no colo da mãe. Dependia deles para tudo.

Terminara os estudos, mas há três anos os enrolava e se enrolava. Não sabia o que queria ser quando crescesse. E ela já havia crescido tudo o que havia para crescer. Pensava em ser médica, advogada, engenheira, bibliotecária, astronauta, alquimista, cartomante. Isso mesmo. Nesses anos todos de introspecção vocacional quis ser cartomante. Talvez para jogar cartas para si mesma.

No amor, a situação não era menos complexa. Já havia beijado mais de 100 bocas, mas ainda não havia encontrado uma para chamar de sua. Eram amores passageiros. Aliás, eram paixões explosíveis. Aliás, era fogo de palha. Nunca havia de se entregar a uma dezena de marmanjos que ficavam loucos por suas pernas perfeitamente tortas. Tinha as pernas fartas de carne e postas num ângulo parabólico. Mas nada que comprometesse seu andar e ata mesmo sua plástica. Era um charme a mais. Como quem tem aquela pintinha no canto do rosto, aquela pelugem em um ponto estratégico do corpo, aquela mexa destoante no universo capilar.

Nunca lhe faltaram pretendentes, sempre teve os homens que quis, mas sempre quisera errado. Arrumou um emprego de vendedora em uma loja de gripe para tentar ocupar a cabeça, mas não chegara ao final do período de experiência. Era péssima para vender qualquer coisa. Péssima para vender calçar, péssima para vender o futuro, péssima para vender prazer, péssima para vender ilusões. Só era boa para se vender. E vendia aquele sorriso de menina carente como ninguém

Podia vender-se para a mãe, para a tia, para o vizinho, para a professora, para o personal trainer, para o veterinário, para a sobrinha, para amigas e inimigas, conhecidos e desconhecidos. Todos a compravam com facilidade, mais a devolviam com a mesma facilidade. Talvez, por isso, aqueles 20 anos a pesaram tanto. Talvez porque, dentre tantas devoluções, ela queria se devolver. E aquele 20, impotente, gritava que não dava mais tempo. Os gafanhotos haviam devorado todas as suas esperanças verdes ou não.


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