Daniel Campos

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Flores de outras épocas

Crisântemos, cravos, antúrios,..., ao abrir a janela, o tédio nos invade. A data do calendário muda e continuamos com a sensação de que anda tudo normal. Sensação de fazer parte de uma espécie de paraíso. Vez ou outra surge algum problema, mas nenhum "monstro de sete cabeças" vaga pelas ruas ou se esconde nas bancas de revistas. Eis o cabresto da inocência. Somos obrigados (inconscientemente) a viver algo que sequer existe.

"Quem vai me escutar, quem vai me entender, ninguém pode mais sofrer"... A canção de protesto de Geraldo Vandré de outras épocas volta aos nossos assobios. Sofremos sem saber que o fazemos. O sofrimento não é só uma dor física e aparente, mas também uma dor moral, íntima e que passa despercebida. Entretanto, parecemos padecer na morfina.

Se não mais se caminha cantando e seguindo a canção, de fato vivemos o paraíso. Será? Há doentes que morrem nos corredores dos hospitais. Há crianças com olhos famintos. Há bocas atrofiadas e analfabetas. Há corpos entregues à violência. Há agricultores humilhados e desvalorizados. Quem não se lembra dos cinco dedos usados por Fernando Henrique Cardoso nas campanhas? A mão intelectual espalmada em promessas. E por que o nosso silêncio? Por que não se diz nada? Por que essa "paz"? Por quê?

Num passado próximo se usava a vontade e a arte contra a ditadura militar. Acreditavam nas flores vencendo os canhões. E o comunismo ainda era um sonho. A censura, a tortura, os porões da ditadura. A falta de liberdade. Éramos todos soldados, armados ou não. Queríamos ser livres. O exílio, a boca fechada, as mãos armadas e a caminhada contra a corrente. O espírito guerreiro engajado numa liberdade que roçava as línguas, deslizava sobre a pele e se explodia em palavras, atos e num simples gesto de não. Hoje não se diz não. Hoje se aceita. Sem perceber, abaixam-se as cabeças. Não há luta e sim um bando de derrotados que se acham ou são obrigados a se achar vencedores.

Loucura?! Eis a democracia. Acabou-se o regime militar, as eleições indiretas, a censura. Somos os louros da vitória. Certo? Errado! A nossa democracia é opaca. Uma ilusão, uma farsa, um objeto de manipulação. Somos reféns do governo. Ainda não ocorreu "a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar". Descortinem os olhos! A ditadura continua. Ditadura disfarçada, encoberta e com uma dose de nocividade ainda maior. Porém como sempre há um filete de esperança, a história continua em nossas mãos. Basta acreditar e querer. Loucos são os descrentes...

A ditadura contemporânea toma a face do jardim do éden por meio da mídia. Com muita maquiagem e ideologia nos fazem de bobo. E aceitamos o título. Temos os olhos vedados e não sabemos contra quem lutar. Os militares carrancudos desapareceram do poder. O nosso inimigo é invisível. O primeiro desafio é contra nós mesmos. Nós versus nós. "Vem, vamos embora, esperar não é saber, quem sabe faz a hora, não espera acontecer".

Não devemos esperar que uma emissora de televisão pinte a nossa cara, tampouco esperar pelo primeiro grito ou acorde. "Se alguém tem que morrer, que seja para melhorar." Basta às mortes veladas em silêncio. O desejo não falece necessariamente com o corpo. Ele é maior, quase supremo. Todavia, o tédio nos invade. A quietude dos antúrios, crisântemos, cravos,..., adormece no seio furta-cor da nossa pseudo-liberdade. E tudo isso "prá não dizer que não falei das flores".


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