Daniel Campos

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Esperança

O galo avermelhado se equilibra e, entre asas abertas e peito estufado, canta. O dia ainda tem a pele negra. Bento, um homem com marcas de sol e de pouca conversa, acorda. O relógio passeia em torno das quatro horas da madrugada. Sai com as botinas e com uma camisa rala de flanela. Sai pelo orvalho. Quebra a escuridão num cigarro aceso. Os pés e a terra fria. Os pés e o esterco. Os pés e o mesmo caminho de anos atrás.

Como de costume, o encontro. Esperança o esperava com olhos grandes. Sozinha no curral, Esperança. Uma vaca mocha, branca com manchas negras. O coxo para tantas bocas e uma só vaca. Naquele mangueiro, Bento se encontrava com o rasto de tantas outras vacas. De fato, tinha lembranças. Aquele curral que teve quase cem cabeças, hoje, só tem uma. Esperança. Dói olhar aquela esperança solitária. A dor traumática de se separar daqueles bichos. Mas veio a crise e não tinha como ser diferente. Bento não entendia de política, mas sabia que a culpa era daqueles homens engravatados.

Não podia culpar o tempo que continuava a lhe dar chuvas. Não podia culpar a terra que continuava a lhe dar pasto. Não podia se culpar, posto que os braços continuavam fortes. A culpa era daqueles homens que se pudessem roubariam a sua terra num piscar de olhos. Bento era de paz, mas se um daqueles sem-vergonha de gravata entrasse em suas terras com aquele falatório de progresso prometia cortá-lo na foice qual capim novo.

Bento podia acordar mais tarde (só tinha uma vaca para ordenhar), mas preferia acordar no mesmo horário de antigamente. Antes de ordenhar Esperança, ficava encostado num canto do mangueiro com os olhos voltados para a última vaca que lhe restara. Era como se a paquerasse. Era a lembrança de anos melhores e a garantia de que não iria passar fome. Perto das seis horas, o homem caminha com uma balde de alumínio cheia de leite. Era o suficiente. Com alguns punhados de farelo, o homem agradece Esperança.

Bento, lavrador de pai e mãe, segue seu caminho. Entra em casa, um bom dia para a mulher e para os dois filhos que volteavam a mesa. Um deles, desempregado, ajudava no serviço da roça. Mesa posta. Antes de sangrar sua boca com um gole de café preto, Bento levanta um brinde para a imagem de São Benedito. Imagem que fica num altar improvisado no canto da cozinha. O leite levanta fervura no fogo. A mulher de Bento sopra a nata grossa. Bento, cinqüenta e tantos anos naquele chão. Um dos filhos sai para o trabalho. Trabalhava pesado numa fábrica. Uma das fábricas que Bento tatno bronqueava. As fábricas que engoliam as terras, que roubavam olhares dos políticos, que tiravam os prazeres do homem. Bento fazia previsões de que no futuro o mundo seria uma enorme fábrica de fome.

De repente, o choro de Cecília. Enquanto a mãe prepara a mamadeira da pequenina, Bento a segura nos braços. Com seu jeito caboclo, Bento leva a neta até a janela. De lá, mostra a vaca que pasta perto dali. A menina sorri. Gostava da vaca, assim como gostava dos cachorros, das galinhas, do cavalo. Mas o sorriso diante da Esperança parecia ser diferente, ao menos, no entender de Bento. Sorriso que logo se mancha de leite.

O dia segue. Bento segue e deixa olhares. Um olhar para a neta, um para São Benedito e outro para a vaca. Enxada nas costas. Era preciso carpir a sementeira que brotava na roça de milho. Por mais difícil que a vida estivesse, ele não podia deixar de alimentar sua Esperança.


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