Daniel Campos

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24/11/2013 - Em outro mundo

Ilhado. Isolado. Fadado ao esquecimento. Náufrago de um oceano sem energia, sem luz, sem eletricidade. Escrevendo saudades à luz de velas. Sem sinal de telefone, internet, fumaça. Porém, com sinais de esperança. Terra, céu, corpo e almas encharcadas. Bendita chuva que libera a fragrância das matas. Enquanto bocas descrentes reclamam dos prejuízos, pássaros cantam pelo silêncio. Sem o som da televisão, do rádio, do celular (descarregado), o som de bem-te-vis, sabiás, pássaros pretos, canários e jandaias ficam nítidos. E os relógios demoram a dar suas voltas.

A chuva fina que toca tímidas nossas peles nem parece a mesma de ontem. De fato, a chuva, como um poema, por mais semelhante que seja, nunca é a mesma. Traz sempre uma mensagem diferente. Hoje, sou calmaria. Ontem, fui tempestade. Fui personagem de um filme apocalíptico sem roteiro escrito por mim. Eu fui coberto por um céu que roncava com suas nuvens grossas e escuras. Eu fui chicoteado pelo granizo que deixou o gramado branco em poucos minutos. As costas do poeta acostumadas a suportar o peso do mundo foram apedrejadas.

Há muito, meus olhos não se deparavam com uma chuva tão arrebatadora, capaz de colocar árvores imensas de joelhos e mãos descrentes unidas em oração. Entre raios e trovões, meus olhos ficaram ainda mais verdes. Meu avô mais uma vez deixou clara sua presença em minha vida e eu conversei com o vento, saudei os espíritos da natureza e agradeci pela proteção. Enquanto o vento derrubava árvores e destelhava casas vizinhas, entre relâmpagos que cegavam de medo e trovoadas que arrancavam gritos, meus pés descalços caminhavam pelo tempo.

Enxurradas se cruzaram. Muros não resistiram. Raízes apareceram. Cachorros se esconderam. Velas fizeram o papel de estrelas. Goteiras se alastraram. Corações em curto. Frenadas bruscas. Comércios fechados. Sentimentos alagados. Assombrações à solta. Sono velado. Depois do fim do mundo, o começo de outro com um amanhecer que me levou de volta à roça, com uma chuva capaz de germinar sonhos que já tinham sido dados como perdidos na sequidão da realidade.


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