Daniel Campos

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25/07/2010 - Eles vivem

Ele vive toda vez que toca uma moda de viola no rádio, toda vez que eu pego um táxi, toda vez que eu como macarrão gelado. Ele vive toda vez que eu vejo uma roda de amigos, um velhinho e uma pracinha, uma batida de catira e alguém dando balas para criança. Ele vive toda vez que eu preciso caçar um lagarto para trazer à mesa num almoço de domingo. Ele vive toda vez que eu fico frente a frente com um jogo de bocha. Ele vive toda vez que eu escuto o som dos relógios de bolso, que eu recolho um parafuso na rua, que eu vejo Inezita Barroso na televisão. Ele vive toda vez que eu encontro uma história de pescador, que eu busco nas memórias um elogio capaz de me motivar. Ele vive toda vez que eu como doce de leite de colher, que tem arroz com frango frito em meu prato e que vejo um chinelo de dedo azul e branco caminhando por aí. Ele vive toda vez que eu olho no fundo do espelho e digo: olha eu aqui.

Ela vive toda vez que eu faço uma oração, toda vez que eu ouço um sotaque meio caipira meio italiano, toda vez que eu mexo uma polenta com colher de pau. Ela vive toda vez que eu vou ao mercado e venho parando de esquina em esquina para aliviar o peso das sacolas. Ela vive toda vez que eu passo pelo meu jardim de onze horas e cochilo no sofá. Ela vive toda vez que eu me benzo diante de uma igreja, que eu conto as contas de um terço e vejo uma roupa quarando no quintal. Ela vive toda vez que eu vou a um restaurante e fico diante daqueles pratos de novela. Ela vive toda vez que o caldo da manga escorre em meus braços, que eu passo roupa, que eu molho o bolo na sopa. Ela vive toda vez que eu preciso de alguém pra chorar comigo. Ela vive toda vez que eu como sorvete de ameixa, que eu encontro uma tartaruga ou que floresce as flores de maio por aí. Ela vive toda vez que eu olho no fundo do espelho e digo: olha eu aqui.

Ele vive toda vez que eu me deparo com uma história de assombração e preciso de um quê de motivação. Ele vive toda vez que eu faço um nó em uma gravata, toda vez que eu ouço o ronco de um trator, toda vez que sinto o cheiro caubói de uísque. Ele vive toda vez que eu abro uma porteira, que eu coloco um chapéu, que eu vejo uma plantação. Ele vive toda vez que eu imagino uma boiada rompendo o estradão. Ele vive toda vez que eu ponho meus pés na terra fresca e úmida. Ele vive toda vez que eu colho uma verdura, que eu como torresmo e ovo frito. Ele vive toda vez que eu escuto um galo cantar, que eu vejo um tempo de chuva levantar, que eu ouço Nelson Gonçalves. Ele vive toda vez que uma leitoa pururuca diante dos meus olhos. Ele vive toda vez que eu escuto o que diz a criação. Ele vive toda vez que eu vejo um pé de valsa ou um pé de abacate por aí. Ela vive toda vez que eu olho no fundo do espelho e digo: olha eu aqui.

Antônio, Adélia e Liberato vivem em mim.


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