Daniel Campos

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16/11/2008 - De bandido a herói e de herói a bandido

Onde será que o pai escondeu meu vídeo-game? Já procurei em cima do armário da cozinha, no velho cofre que perdeu a tranca, na penteadeira da mamãe. Onde será que ele está? Estou de castigo, mas não posso ficar sem jogar. Esses três dias que fiquei longe do controle já fora o bastante. Além do mais, papai não precisa saber. Eu jogo um pouquinho e o escondo novamente, no mesmo lugar. Ele só vai voltar do trabalho no final do dia. Ainda faltam três horas e vinte e oito minutos. É o suficiente para eu matar minha vontade. Para minha sorte, mamãe foi resolver umas coisas na cidade e só vai voltar com ele. É a minha chance. Mas eu estou perdendo muito tempo. Precisava achá-lo logo. Quem sabe no guarda-roupa? Camisas, meias, cuecas, lenços, calças, cintos... Ah! Onde será que ele enfiou meu vídeo-game? Tudo porque eu tirei nota baixa na escola, matei o gato da vizinha, respondi mal aquela minha tia chata. Isso lá é motivo para me deixar sem vídeo-game? Se não bastassem as três chineladas que eu ganhei na perna, a bronca, a cara feia, eu tive que ficar sem uma das coisas que eu mais gosto. Ou seria a que eu mais gosto? Vestidos... não... essa já é a parte de mamãe do guarda roupa. Só se estiver no maleiro. Mas é muito alto. Eu não alcanço. Mas se eu pegar aquela cadeira do telefone e subir nas suas costas pode ser que dê certo. Antes tentar do que ficar sem meu joguinho. Nossa como a cadeira é pesada. Só mais um pouco, deixa-me esticar o braço. Pronto. Nossa! Mamãe vai me matar. Derrubei um monte de toalha, de roupa antiga. Também, estava tudo embolado, apertado aqui. Que bagunça. Depois, vou ter que guardar tudo. Quem sabe se eu procurar um pouco mais. Vou esticar um pouco mais meu braço. Parece que achei algo. Ta enrolado em um pano. É um pouco frio. Será meu vídeo-game? Não. É muito pequeno. Mas o que será? O que é isso. Ai meu Deus, to escorregando. Aiiiiiiiii. Cadeira traiçoeira. Ainda bem que cai em cima da cama. Mas o que é isso? Nossa mãe, isso é uma arma. Papai tem uma arma escondida em casa. Que legal. Jamais pensei que um dia pegaria numa dessas. Deve ser uma pistola automática ou será um calibre 38. Não entendo muito disso não. Deixa só o Diego me ver armado até os dentes. Vai ficar morrendo de inveja. Quero ver o Ricardo vir falar que não posso jogar no time da escola porque sou perna-de-pau. Ah! Posso fazer tantas coisas com essa arma. Nem preciso mais do vídeo-game. Agora eu sou o cara. Vou levá-la dentro da mochila e apontar para cara daquela professora idiota que foi me dedurar para meu pai. Vou acabar com ela. Melhor. Vou dar um tiro para o alto na hora do recreio e todo mundo vai ter medo de mim. Já pensou? Até o Gustavo vai se ajoelhar e pedir desculpas por ter me chamado de rato de laboratório. Só porque não sou forte e bronzeado como os meninos... Mas eles todos vão me pagar. Vou ter que agradecer muito ao meu pai por ter me dado esse presente. E ele não vai sentir nem falta se eu tomar emprestado seu revólver só um pouquinho. Estou me sentindo igual naqueles filmes que passam tarde da noite. Parece que estou ouvindo até mesmo aquela música de suspense. Vou arrepiar geral. Posso entrar naquela loja da esquina e sair de lá com a última geração do vídeo-game que eu quiser. O meu estava ultrapassado mesmo. E depois, posso pegar um monte de refrigerante, chocolate, sorvete... Mandar um taxista lá do ponto da praça me levar para o parque de diversão. Até a Aninha vai curtir esse meu poder todo e deixar o Gustavo de lado. Minha vida nunca mais será a mesma. Olhe eu lá no espelho da penteadeira da mamãe. Estou diferente, mais forte, mais bonito. Parece até que cresci um pouco mais. Virei homem. Só não posso deixar meu pai perceber que estou com o brinquedinho dele. Oh não, estão abrindo a porta. Mas quem será? Ainda não está na hora de meus pais chegarem. Será ladrão? Mas por que estou com medo? É só atirar e pronto. Vou ser herói. Vou matar o bandido que queria roubar a nossa casa. Meu pai vai me perdoar por tudo e ainda vai me colocar no colo, vai gostar de mim. Basta eu ficar calmo, apontando para a porta e esperar o momento certo. Quando a porta abrir, dou logo uns três tiros para não ter como errar. Os passos estão mais perto. Estão chegando. É um, é dois, é três... Nunca atirei, mas não deve ser difícil. Já fiz tanto isso no vídeo-game que devo estar craque. Basta pensar que é mais um daqueles carinhas do jogo que eu tenho que matar para passar de fase. Eu sei fazer isso. Eu posso. Eu consigo. E eu preciso mudar de fase. Atenção. A porta está abrindo. O suor escorre pela minha testa. Começo a tremer. Fecho os olhos e disparo. Um disparo, dois disparos... e antes do terceiro, um grito conhecido. Como é que o bandido fez para ficar com a voz do meu pai? Pausa. E agora? Estou entre o terceiro tiro e o abrir dos olhos.


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