Daniel Campos

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Da porteira

Debruçar sobre uma porteira fechada é perder os olhos lá onde o céu se deita na terra. Lá onde o horizonte não tem uma linha definida. Lá onde tudo se encontra, se mistura, se faz impossível. A porteira fechada parece trancar histórias, lembranças, um ontem que sente saudade de si próprio. A sensação de admirar a paisagem vista da porteira é a de estar diante de um porta-retrato sem molduras.

As mangueiras com as promessas de suas mangas vermelhas; o verde que se espalha em manchas de abacate; a ameixeira que espera suas flores se tornarem veludos amarelos; o chuchu parece suspenso no ar por uma linha imaginária; as flores de São João vestem o arame farpado derramando-se sobre os mourões...

A vida brota da terra em cores e sabores e não é primavera. O tom pastel que se esparrama pelo dia simboliza o final do outono. A vida feita de épocas. Ir e vir de uma maneira diferente a cada estação. Épocas.

Conforme o lado do vento, os mugidos e os aboios ecoam pelo tempo. O gosto do leite quente tirado na hora parece nunca ter saído da boca. O leite com aquela espuma leve que borrava o rosto. Onde antes se via o pasto verde, hoje a terra se oferece nua e vermelha. Uma terra que parece ter sido ventre do sol. Da porteira, a boiada é poeira vermelha.

A porteira parece dividir a vida. De um lado o passado, de outro o amanhã. Lembranças e esperanças parecem ser infinitas, não se vê ponto final em nenhum dos dois caminhos. Por entre os vãos da madeira, os dois caminhos parecem se encontrar. De repente, uma paina se desprende e cai de improviso entre os raios do sol e as sombras das paineiras. Aquela bolha branca flutuando sem rumo certo...

Os olhos parecem descansar, romper com o cotidiano. Observar o movimento das nuvens, a direção do vento, o tempo de chuva se formando ao longe. O silêncio deixa rastros na terra. Não se escuta carros, trens, máquinas e o trator que roncava distante parece ter se calado ou ter ido ainda mais distante. Não se sabe as horas, Não há ponteiros em lugar algum.

A imensidão do espaço parece engolir nossos corpos. Vez ou outra, a vida se pronuncia no canto de um galo, no latido de um cachorro e, dependendo da sorte e do sol, em um lagarto daqueles verdinhos que, sem mais nem menos, cruza o terreiro. O terreiro que abraça as raízes do abacateiro há mais de meio século. Uma curruíra seresta lá perto da tulha de paredes que se entregam ao tempo.

Com os olhos perdidos na estrada surge uma sensação de vazio, como se aquele caminho não acabasse. Por um momento, surge a vontade de percorrer tudo aquilo (mesmo tendo a sensação de que já percorri ou ainda percorro). Sem respostas, prefiro deixar os olhos tombados sobre a vista da porteira. Da porteira, em meio ao infinito, a vida não faz sentido... é apenas mais uma pedra, mais uma folha, mais um fruto entre tantos, embora com dificuldades, aparências e sabores diferentes.

Os olhos vazam o choro. Um choro que não é triste, posto que ele nasce da beleza daquele cenário. Um cenário vivo, em movimento. Embora sozinho, há tantas companhias comigo. O vento tece o dia de forma triste. Tantas recordações, quantos sonhos. A vida parece breve e infinita, forte e frágil, simples e rara.

A brasa queima no fogão a lenha, a chapa de ferro estrala e a água do bule levanta fervura. Pela chaminé do antigo casarão vê-se a fumaça. O cheiro de café coado no pano escorre pelo ambiente. O café fresco parece invocar o gosto do passado; leite e aboios. Da porteira, surge um sentimento de saudade. Uma saudade que não se foi.


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