Daniel Campos

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26/01/2010 - Corações de pano

No quarto dos fundos havia algumas caixas de bugigangas e outros cacarecos, um tapete do tempo de vovó, um telhado sem forro, livros abandonados e duas baratas de estimação que não incomodavam, tampouco assustavam ninguém. A janela dava para um terreno ermo, com árvores e horizontes a perder de vista. Os moradores da casa não costumavam passar muito tempo ali, apenas procuravam alguns pertences e logo deixavam o local.

Era um quarto abandonado. Ao contrário do que possa parecer não foi destinado à bagunça, mas ao convívio. Contudo, por questões místicas e metafísicas, não havia cristão que agüentasse ficar ali por muito tempo. Energias negativas, vibrações estranhas e arrepios inesperados eram captados ali. Podia ser besteira, mas o fato é que esse clima fantasmagórico afastava as pessoas dali.

Para piorar, nos últimos dias começou a se ouvir as pedaladas de uma máquina de costura. Mas a costureira mais próxima estava a quilômetros dali. No entanto, sempre que se entrava no cômodo ouvia-se um chuleado perfeito. Era nítido o som da agulha furando o tecido. Mas o que seria? Uma brincadeira de mau-gosto ou o fantasma de uma antiga moradora ou morador. Afinal, poderia ser um alfaiate.

Tiraram todos os penduricalhos do quarto deixando-o nu. Jogaram sal grosso sobre o piso, colocaram um crucifixo na parede e o isolaram com cadeados e correntes. No entanto, nos fundos daquela casa o barulho da máquina continuou e camisas sem botão apareceram com seus respectivos botões no cabide, calças rasgadas apareceram remendadas nas gavetas e até vestidos novos começaram a aparecer no guarda-roupa.

Portas e janelas foram abertas. Seja o que fosse aquele barulho existia para o bem. A felicidade só teve fim quando os destinos daqueles moradores passaram a ser cortados e costurados de acordo com os propósitos daquele que era especialista em enfiar agulhas e alfinetes em corações de pano.


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