Daniel Campos

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Coleira

À primeira vista, um cachorro passa trazendo no final de sua corrente uma mulher. Podia ser um fila, um buldogue, um dálmata, mas era um bigle. Igual ao Snup dos desenhos. Só que não dormia em cima de sua casinha, não tinha um passarinho amarelo como amigo e nem andava iguais aos humanos. Vinha com um laço vermelho na orelha esquerda. Ops, então se corrige a primeira impressão. Uma cachorra passa trazendo no final de sua corrente uma mulher.

A mulher que era puxada pela cachorra não trazia lacinho algum em seus cabelos caramelados. Laka era o nome da cachorrinha que trazia a mulher sem nome. Saindo dos pisos, das calçadas, do asfalto, as duas chegavam a um terreno coberto de grama. Um campo de futebol com traves enferrujadas, sem linhas de cal, sem bola e sem jogadores. Ali, no final da tarde, apenas ela e laka.

Ali, ela folga a coleira e solta a corrente e laka corre pelo campo. Enquanto anda para lá, cheira para cá, balança para acolá, a menina fica parada como se fosse uma pedra no meio do campo. Embora estivesse de calça de ginástica, tênis e óculos escuros, ela não se movimenta. Ao contrário, fica ali, plantada, como se fosse uma flor de pedra. Lembrava das relações em casa e no trabalho e parecia ficar ainda mais pesada.

Não era gorda, mas se sentia como se pesasse toneladas. A pressão sob suas costas estava demais. Afeto, amor, amizade eram sentimentos que foram acorrentados e jogados no calabouço de seu eu mais profundo. Sua vida era cheia de regras, horários, normas, compromissos, responsabilidades. Ela perdera a capacidade de subverter a ordem. Era como se a cada passo fosse vigiada por olhares delatores. Censuravam-na e ela, depois de tantos cortes, desistira de gritar. Havia tantos ditadores em sua vida e ela não era das lutadoras mais aguerridas. Acomodava-se, cruzava os braços, fingia que não era com ela, seguia o cordão e nada mais. Era a mais reacionária das garotas que se tem notícia. Havia sepultado seus sonhos com medo de sofrer. E para se assegurar que não sofreria, enterrou-os a mais de sete palmos em seu coração já devorado pelos vermes frios de seus dias mais vazios.

De repente, uma menina passa correndo com um fox-terrier ao seu lado, gritando, brincando, quase que rolando e se amando pela grama e ela sente pontadas de inveja. Seus olhos que sempre foram tão bons, agora eram capazes de secar pimenteira. Talvez, por isso, os beijos não eram mais os mesmos. Talvez, por isso, a satisfação passava longe de sua cabeça. Talvez, por isso, a inspiração havia fugido. Talvez, por isso, o vôo da auto-estima havia sido soterrado e não havia qualquer sinal de sobreviventes. As conversas, os abraços, os sorrisos estavam mais distantes. Diante de todas aquelas faltas, restava-lhe aquela cachorra que quando solta dava logo um jeito de se afastar dela e viver a vida que ela não tinha. E a mulher, sem nome, sentia um estranho prazer em viver naquela cachorra. Como ela queria pular, correr, comer o que bem quisesse, sujar-se de terra, cheirar outros homens e mulheres, mas não podia... Não podia ou não queria?

O sol é puxado do céu e a menina chama por Laka. Aperta a coleira e sente como se estrangulassem seu pescoço. Prende a corrente e sente como se a puxassem para onde ela não queria ir. Laka faz o caminho de volta com passos mais lentos arrastando a mulher sem nome que, mesmo sem coleira, traz um coração acorrentado.


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