Daniel Campos

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13/07/2008 - Chora Sanfona

"Tudo em vorta é só beleza
Sol de Abril e a mata em frô
Mas Assum Preto, cego dos óio
Num vendo a luz, ai, canta de dor"
(trecho de Assum Preto, de Luiz Gonzaga)

Ele se chamava Malaquias. Embora soasse bíblico, não tinha nada a ver com aquele santo de mesmo nome, que tinha visões do futuro. Esse Malaquias de quem falo, chamado de Malaco pelos mais próximos, pouco enxergava o tempo presente mesmo. Pudera, depois que passou da casa dos 80 anos, via muito pouco a sua frente. Caminhava devagar, mas era presença constante nas calçadas. Principalmente, naquelas que levavam à Praça da Capela.

Era ali, em um banco na frente da escadaria da capela de São Judas, que ele fazia ponto. Não que fosse católico praticante. Era temente a deus, mas não chegava a entrar na igreja. No entanto, toda vez que ia tomar uma cachaça, jogava um gole, ao chão, para o santo. E olha que não eram poucas suas cachaças. Ele dizia que ela, a branquinha, o fazia enxergar melhor. Boa desculpa para quem vivia num balancê para lá, num balancê para cá.

Malaquias não chegava sozinho ao banco da praça, mas acompanhado de sua sanfona todo santo dia. De domingo a domingo. Não descansava dia algum. Seu horário era das dez da manhã às cinco da tarde. Era como se batesse ponto naquele imenso relógio da igreja Matriz. Acordava por volta das sete da manhã, tomava um ovo quente, comia um pão com manteiga, bebia um gole de café com leite e pronto... estava preparado para mais um dia de trabalho?

Trabalho? Seu Malaquias encarava aquela praça como um trabalho. Aquele banco de madeira pintado de branco era seu escritório. Ou melhor, seu palco. Passava o dia todo ali abrindo e fechando aquela sanfona surrada. E olha que embora nunca conseguisse gravar um disco ou se apresentar em uma grande casa de espetáculo, o velho Malaco tocava como poucos. Era de encher os olhos ou, melhor, os ouvidos. E pensar que ele começou a manusear aquele instrumento em razão de um amor.

Dona Tereza, o amor de seu Malaquias, era apaixonada por um sanfoneiro. Nem notava que seu Malaquias existia. Nos bailes, ele a convidava para dançar, mas ela preferia dançar sozinha no compasso do sanfoneiro. O tempo foi passando e ele decidiu tomar uma providência um tanto radical para quem estava acostumado com a enxada nas roças de feijão. Emprestou uma sanfona de um primo e começou a treinar. Não levava muito jeito não, mas em uma sexta-feira 13 fez um trato com sabe-se-lá-quem para tocar o tal instrumento. Desde então, virou sanfoneiro de mão cheia.

Um dia, chegou ao baile com a sanfona. Para alegria dos presentes, ao contrário de duelos de espada, de lanças, de flechas... teve duelo de sanfona. Tereza ficaria com quem fosse mais longe. Dizem que seu Malaquias tocou durante nove horas sem parar e levou o coração da moça, já com o dia amanhecendo. Desse dia em diante, Malaco ficou famoso e virou o tocador de sanfona oficial dos bailes, das festas juninas, dos arrasta-pés. Tocava até em casamento e em velório, quando o defunto fosse farreador. Toda noite, tinha que tocar umas modas para Tereza, que tinha reações diversas. Contam que dona Tereza se transformava, virava uma outra mulher ao som da sanfona. Ela era toda tímida, toda recatada, mas a sanfona a incendiava. A sanfona declarava o amor de Malaquias, pedia perdão quando os dois brigavam, chorava quando ele estava triste... Como parte de seu corpo, esse instrumento se tornou inseparável em sua vida. Até no próprio casamento, recebeu a noiva tocando uma espécie de Ave Maria sertaneja.

No entanto, essa felicidade toda durou apenas sete anos. Enquanto tocava um de seus forrós, Tereza morreu. Seu Malaquias chorou, a sanfona chorou, o sol cadente chorou. A língua do povo falava que era o coisa ruim que veio cobrar a dívida por ter ensinado o sertanejo a tocar aquela sanfona como poucos. Mas tinha que levar justo seu amor?! Porém, Malaco não dava ouvidos para o que o povo falava, desconversava sobre encanto ou feitiço, queria mais era chorar sua dor. Não teve santo que o fizesse voltar a tocar. A sanfona foi deixada em um canto, calada e esquecida.

Se você acha que a história terminou, está enganado. Tereza apareceu para seu Malaquias em um sonho pedindo para ele voltar a tocar. E o viúvo, para cumprir a vontade da bem-amada, toca até hoje em frente à igreja onde se casaram. Diziam que tocava de olho fechado porque ao som da música conseguia ver dona Tereza. Há quem jurava que enquanto tivesse música na praça, o fantasma da mulher que adorava forró ficava dançando por ali. Não faltava fofoqueiro que via girando para lá e para cá. Entre muitas histórias, algumas alegres e outras chorosas, o velho Malaco ia levando a vida. Ele conseguiu se aposentar com um salário pequeno, mas morava com uma filha e não era de muita despesa. Para sua infelicidade, tinha saúde de ferro. As moedas que jogavam em seu chapéu era a conta certa da pinga que bebia no bar do Juvêncio. Bebia pra tentar esquentar a saudade que esfriava seu peito enquanto tocava assim:

"Chora sanfoninha chora chora
Chora sanfoninha a minha dor
Minha sanfoninha amiga certa
Que chorando tu desperta
O coração do meu amor"
(trecho de Chora Sanfoninha, de Luiz Gonzaga)


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