Daniel Campos

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16/09/2010 - Capítulo 53

Expiação

Sebastian revira as clínicas de Santa Fé, mas não encontra Malena. Ao contrário de um, como planejado, passa três dias fora. Ao pegar o caminho de volta para casa, uma sensação de angústia lhe consome, como que um aviso de que algo muito ruim estivesse por acontecer. Já em Buenos Aires, a poucas quadras de seu apartamento, para em um semáforo e um garoto de boné lhe oferece um jornal. A capa traz uma foto sua logo abaixo da seguinte manchete: procurador acusado de inúmeros crimes continua foragido.

Nunca foi tão difícil acreditar no que estivesse diante de seus olhos. Mentira? Brincadeira? Golpe? Seja o que fosse, é algo que foge do juízo perfeito. Não há outra saída senão comprar aquele periódico. E com o carro atravessado no meio da rua, ao som de buzinas e palavras ofensivas, ele devora aquele texto que diz o seguinte:

“O promotor Sebastian, acusado de ter assassinado o pároco da igreja São Miguel Arcanjo, monsenhor Mariano, depois de uma discussão, continua foragido. O corpo do padre foi achado pelo sacristão, na última quarta-feira, na sacristia da Igreja. Estava de batina caído ao chão, vitimado por dois disparos; um deles perfurou o pulmão e o outro, o intestino. A polícia conversou com vários fiéis que freqüentaram a Igreja no dia anterior à morte do padre e a maioria das pessoas ouvidas apontou uma discussão entre o sacerdote e o promotor como o único fato suspeito. Segundo informações, o padre foi morto algumas horas depois desse incidente. Alguns depoentes ainda disseram que essa não foi a primeira vez que eles se desentenderam.

O sacristão, que vem sendo tratado como uma das principais testemunhas, confirmou em seu depoimento que o marido de Malena havia sido expulso da Igreja por Mariano em razão de falhas de comportamento e descontrole emocional. Também disse que certa vez o promotor tentou quebrar a imagem de São Miguel Arcanjo e foi impedido pelo próprio padre. Isso sem falar que tentou obrigar o monsenhor a fazer um exorcismo. Uma das partes mais explosivas do relato do sacristão é a que versa sobre o fato do padre ter sofrido diversas ameaças vindas de Sebastian.

Irmã Ruth, do colégio das Escravas do Coração de Jesus, no velório público de padre Mariano deu declarações à imprensa agravando as suspeitas que pesam sob o padrasto de Micaela. Até agora, a única pessoa da família que se pronunciou sobre o caso foi a ex-cunhada do promotor, dizendo que não sabe de seu paradeiro e que não se surpreende com o episódio. Em entrevista a nossa reportagem, Alicia revelou detalhes obscuros da vida deste homem que parece ter se escondido atrás da imagem de justiceiro.

Alicia acusa Sebastian de maus-tratos em relação à mulher, aos enteados, ao sobrinho, à sogra, à empregada e, até mesmo, a ela. Também o responsabiliza pelo fato de sua irmã, Malena, estar internada há mais de um mês recuperando-se de fortes traumas sofridos. Para agravar a situação, diz que o promotor seqüestrou os próprios enteados. O menino, de onze anos, foi encontrado todo machucado, vítima de um assalto que sofreu quando voltava sozinho de um encontro musical tarde da noite.

Já a garota, de quatorze anos, foi resgatada no apartamento do padrasto em estado deplorável, drogada e alcoolizada. Pior, ela está grávida e há suspeitas de que o pai da criança seja Sebastian. Segundo a ex-cunhada, o promotor já havia tentado abusar da enteada, da empregada e dela mesmo ao longo dos últimos anos. Afastado do exercício da promotoria há meses, o promotor, que ficou conhecido por derrubar inúmeras personalidades da Argentina, deverá ser julgado nos próximos dias. Por enquanto, o homem que construiu uma carreira a partir da imagem de defensor da Justiça está agora na lista de procurados da polícia.”

Angústia. Dor de cabeça. Tremores.

Realmente, está a cada momento mais difícil acreditar nessa história.

Sebastian rodopia, derruba os jornais da mão do menino e volta para o carro. Liga a chave e acelera sem saber para onde ir. O importante é sair dali. Seu rosto está bastante visado. E antes de tomar qualquer decisão é preciso entender o que está ocorrendo.

Não dá pra voltar para casa. Não nessa situação. Ele está sendo caçado como um bandido. Deve haver uma movimentação intensa ao redor de seu prédio. Policiais e jornalistas. Perguntas e flashes. Burburinhos e sirenes. É preciso escapar disso. Mas ir para onde? Alicia deve ter entregado aos policiais a lista com os lugares que costuma freqüentar.

Matar um padre? Engravidar a enteada? Espancar a cunhada? Como fugir de crimes que não cometeu? Mas como explicar sua ida a Santa Fé, seu desaparecimento nos últimos três dias, a história de não ter atendido celular algum? Ele não tem álibi. Ninguém a essa altura irá acreditar em sua inocência.

Ele deveria ter compreendido os tantos sinais, ouvido o que seus amigos espirituais queriam lhe dizer e ficado em Buenos Aires. Essa viagem a Santa Fé foi, sem dúvida alguma, uma armadilha. Mas agora é tarde para arrependimentos ou lamentações.

Não há para quem pedir ajuda. A menos que...

Suas mãos tremem ao volante. Seus pés pisam em falso. Não consegue raciocinar direito. Aquele é o único lugar que lhe vem à cabeça. O cheiro de tinta fresca lhe dá náuseas. Ele tonteia, tropeça em cavaletes e derruba algumas telas. Celeste se assusta ao vê-lo, diz que ele não pode estar ali e pede para que espere as crianças irem embora. Naquele momento, há pelo menos dez jovens desenvolvendo a arte da pintura sob o monitoramento daquela moça. Um deles pergunta se Sebastian não é aquele homem cuja foto tem aparecido nos telejornais.

Celeste desconversa e pede concentração aos alunos.

Sem graça e com medo de prejudicar a filha de Gastón, ele pede desculpas e deixa o local com olhos baixos.

A pintora dá alguns passos em sua direção, segura em seu braço e pergunta se ele quer que ela deponha como seu álibi, como se tivessem passado aquela noite juntos.

Sebastian agradece, pede desculpas novamente pelo ocorrido, diz que é melhor não mentirem.

- Já existem mentiras demais nessa história, afirma.

- Onde você esteve escondido esse tempo todo? Tentei ligar para o seu celular. Não foi você quem matou o padre, foi?

- Você pensa que eu...

- Não precisa falar nada. Nossa família tem uma casa em Santa Cruz, no extremo Sul da Argentina. Se você quiser ir pra lá eu lhe dou a chave. Posso ir para lá depois lhe ajudar.

- Eu agradeço a preocupação, mas eu não vou fugir. É melhor eu ir embora.

- Não quer ajuda, não quer fugir, não quer conversar. O que veio fazer aqui então?

- Não sei.

Sebastian dá as costas para Celeste. Passando pelas telas, ele encontra uma, sem assinar, que chama sua atenção. É como se ele tivesse um estalo e se lembrasse do sonho que teve com Klaus noites atrás. É o mesmo casarão, com pinheiros no jardim. É ali que está internada Malena.

Ele sabe onde é aquele local. E é para lá que precisa ir. Não há mais nada a perder. Ele só tem uma chance de escapar dessa situação: recuperar a confiança da mulher e convencer a sogra a ficar do seu lado.

Mesmo sem saber, Celeste já havia dado a sua contribuição. É melhor deixá-la em paz.

Ele vai para o endereço da clínica e numa operação arriscada, entra disfarçado conseguindo chegar ao quarto onde estão sua mulher e sogra.

Malena dorme aparentando um semblante desfalecido. Está sem cor, com os lábios pálidos. Ele passa a mão em seu rosto, beija sua boca lentamente, mareja os olhos. Ela ressona.

Em seguida, vai para o rumo de Valentina. Sob a fina luz do abajur, ela, ainda sonolenta, fica incomodada com sua presença. Mesmo sob efeito de tranqüilizantes, agita-se. Sebastian conta que está sendo vítima de várias acusações mentirosas e pede para que ela o ajude, para que o inocente.

Entre os dentes, com a língua um tanto quanto enrolada, ela o chama de traidor, diz que ele escolheu seu caminho ao ficar ao lado de Jhaver.

Aquele homem, desesperado, curva-se e implora por ajuda.

Ela olha nos olhos do genro, balança a cabeça em sinal de não e aperta a campainha. Ele desiste daquela conversa e vai ao encontro da mulher. Acaricia seus cabelos. Beija suas mãos. Ela não abre os olhos. Ele diz palavras de amor em seu ouvido. Ele queria tanto olhar para aqueles olhos, mas não tem oportunidade. Os enfermeiros chegam. Depois a segurança. Mesmo com toda agitação, os olhos de Malena permanecem trancados. Antes da chegada da polícia e dos jornalistas, ele é colocado pra fora daquele quarto. Fica retido na sala da direção, porém, num descuido, consegue fugir jardim afora.

Gritos e silêncios, o som das viaturas e a batida de seus passos chocando-se contra o chão. Ele foge, foge, foge e se esconde. Recupera o fôlego. As horas passam sem impedimentos.

Ele foge, foge, foge, mas não consegue fugir de si mesmo. Tanto que entra na igreja de São Miguel Arcanjo em busca de explicações. Entra pelos fundos, já que há uma intensa movimentação de fiéis na porta principal. É quase noite e aquelas pessoas de rostos tão diferentes vão se unindo em torno de um só motivo: rezar pela alma de padre Mariano.

Sebastian cresceu naquela igreja. Conhece cada uma de suas entradas e saídas, seus esconderijos, seus detalhes a ponto de entrar sem ser visto e surpreender o sacristão que revira gavetas na sacristia. O promotor entra e tranca a porta.

- Escondendo ou plantando provas?

- Como você tem coragem de vir aqui depois de matar monsenhor Mariano?

- Eu não matei ninguém. E isso vai ficar claro depois que todas as etapas da perícia forem reveladas, como o exame de balística.

- Todo mundo sabe que você tinha uma série de desentendimentos com o padre.

- Mas não tinha interesse algum em sua morte. E você sabe disso.

- É melhor sair daqui. Está para começar mais um dia da novena pela alma do monsenhor. Não é bom termos a presença de um assassino entre nós.

- Não saio daqui antes de saber a razão de vir me acusando com tanta veemência. O que pretende com isso? Que vantagem terá em me colocar na cadeia? Quer esconder o que colocando esse crime nas minhas costas?

O sacristão gagueja, tenta se esquivar, pedir socorro, mas Sebastian aperta seu pescoço, exigindo que ele baixe o tom das acusações.

- Vai me matar também?

- Confesse, vamos, confesse quem matou padre Mariano?

Nesse momento uma voz feminina bate na porta e pergunta se está tudo bem. A mulher diz que se o sacristão não abrir a porta ela vai chamar ajuda.

Sebastian cala a boca do sacristão que o empurra. Os dois trocam socos e acusações. A mulher que rodeava a sacristia começa a gritar. É o estopim que restava para explodir uma verdadeira revolta dentro daquela Igreja.

Homens arrombam a porta da sacristia e açoitam o promotor. Betas correm para amparar o sacristão.

Sebastian leva socos e pontapés, tenta correr, mas a porta da igreja está propositalmente fechada. Nunca imaginou que ficar fechado em um ambiente junto com uma imagem de São Miguel poderia ser tão angustiante.

Fiéis seguram o suspeito de ter matado padre Mariano e começam a linchá-lo. Seu sangue se mistura ao vermelho do tapete central da igreja. Seria morto por aquelas pessoas que lotavam as fileiras de bancos se os policiais não tivessem chegado.

Com o corpo coberto por ferimentos, o promotor é levado para prestar esclarecimentos na delegacia. Deixa a igreja sob vaias e gritos de “assassino”. Depois de lavar o rosto e estancar sangramentos com sal, Sebastian fica frente a frente com o delegado, que pergunta se ele não quer fazer um telefonema, chamar um advogado.

Ele diz que não.

O promotor então conta sua versão e responde a uma série de perguntas. Como era de se esperar, o delegado não acredita em suas palavras e o manda para cela.

Embora ainda faltem provas para lhe condenar pela morte do monsenhor, ficaria preso por ter tentado matar o sacristão, que prestou queixa crime acompanhado de uma dúzia de fiéis, e também por ter fugido e ter sido linchado. Isso sem falar do enorme contingente de jornalistas que se aglomera lá fora.

Para todas as partes envolvidas nessa história, seria mais seguro Sebastian permanecer detido.

Algemado e empurrado por policiais, apenas anda, sem dizer nada. Arrancam-lhe o relógio, a carteira, as chaves de casa, a aliança, a corrente com um crucifixo e uma medalha de São Miguel Arcanjo.

Ao entrar no corredor das celas, os presos batem com latas nas grades e gritam. O fedor invade suas narinas. É como se estivesse no Umbral. Mas terá de lidar com aquele mundo e superar aquele ambiente se quiser sair bem em sua defesa. Se é que ele vai querer se defender de algo ou alguém.

Fica em silêncio, em oração e em jejum.

Para a mídia, fanatismo e greve de fome.

Para a polícia, um protesto sem futuro.

Para os fiéis, uma blasfêmia.

Para outros promotores, vergonha.

Para os espíritos de luz, uma esperança.

Para a família, o medo.

Para Malena, a dor de seus olhos fechados.

Para ele, a expiação de seus pecados...


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