Daniel Campos

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20/08/2010 - Capítulo 48

Nas trincheiras da guerra

Os dias passam e Sebastian vai lutando contra os resquícios dos castigos semeados por Jhaver e das atitudes que tomou em defesa de seu algoz.

Tenta entender, acertar, ficar forte, proteger, buscar seu caminho. É preciso se esforçar. Enquanto muitos querem que o homem-carne desabe de uma vez por todas outros contam com o homem-espírito.

Não só Micaela, mas Tomas também passou a morar com o padrasto no apartamento. Os dois desejam uma só coisa: proteção.

Ele havia entrado com pedido de guarda na Justiça, mas os meninos não quiseram esperar pelo resultado. Ninguém suportava mais os mandos e desmandos que Alicia fazia em suas vidas e naquela casa.

De forma dissimulada e sob o consentimento de Valentina, ela usa as roupas, as jóias, os perfumes, os carros, os empregados daquela casa da forma como bem quer.

O promotor não conseguiu impedir que transferissem Malena para outra clínica, cujos médicos, contrariando o bom senso, continuam mantendo-a dopada. O que era para ser apenas um tratamento de sonoterapia transformou-se em uma tentativa de afastar aquela mulher, ativa e cheia de princípios, da realidade. Da própria realidade.

Pior, o acesso das chamadas visitas, exceto a de Alicia, foi expressamente proibido pela diretoria da tal clínica de repouso.

Valentina, a cada dia com mais certeza de que seu genro é o culpado por tudo, resolveu atender a uma recomendação de sua filha mais nova, internando-se no mesmo quarto da Malena.

A argumentação de que a mãe passou por muitas situações difíceis nos últimos tempos, como as perdas de Gastón e do neto aliadas à quase morte da filha e muitas outras desilusões foi mais do que suficiente para convencê-la a se tratar.

Sebastian também foi à Justiça exigir o direito de ver a esposa, mas laudos médicos comprovam que ela precisa ficar em repouso total sob pena de agravamento de seu estado de saúde.

Micaela e Tomas também não podiam visitar a mãe. Além do que, estavam fugindo de Alicia.

O promotor procurou algumas amigas de sua mulher, no intuito de que elas pudessem lhe dar mais notícias sobre o estado de Malena. No entanto, não conseguiu nada.

Para piorar a situação, Alicia move um processo judicial alegando que sua irmã sofria violência física e psicológica por parte do marido. E mais: com objetivo de tirar o cunhado de uma vez por todas de seu caminho inventou um leque de denúncias, comprando algumas provas e seduzindo algumas testemunhas.

Tudo na vida de Sebastian foi transformado em disputas judiciais: seu casamento, sua família, sua carreira.

A marca dos castigos se foi, mas as trincheiras da guerra continuam abertas.

No plano Celestial, Jhaver continua em processo de recuperação. Já não precisa ficar o dia todo no hospital, podendo assim dar início a uma nova vida em uma das comunidades espirituais. Está na Colônia dos Girassóis morando em uma casa pequena e simples.

As colônias espirituais são povoados que se diferem pela vibração e energia, funcionando como alojamento de espíritos em evolução. Levam geralmente o nome da natureza que toma boa parte do terreno: girassóis, arrozal, macieiras, roseiral, mangueiras, cerejeiras, flores do campo...

Os vizinhos ainda estão um pouco arredios com sua presença. Contudo, recebe visitas de Klaus, Alda, Afrânio, Benjamin e dos poucos espíritos que acreditam em sua recuperação.

Por enquanto, tem cumprido suas obrigações de forma satisfatória. Em razão do seu estado, ainda são poucas as tarefas lhe atribuídas, como cuidar do campo.

Fica a maior parte do tempo calado, isolado, de cara fechada. Não se enturma com os outros.

Como vive um momento delicado, está praticamente impedido de descer à crosta terrestre e acompanhar os acontecimentos do que ocorre no mundo da matéria.

Por mais que queira entrar em contato com Sebastian, ainda não pode. Klaus avisou que está sobre uma espécie de vigília de forças que ainda não aceitam sua regeneração. Qualquer deslize poderia comprometer seu intento.

Mas ele não sabia até quando conseguiria se segurar.

Está afastado dos grupos de oração e palestras. Como já tem um nível elevado de conhecimento, sua evolução tem que ser trabalhada de forma diferenciada.

Contudo, ele precisará ter humildade o suficiente para aprender a viver naquele novo mundo e aceitar receber orientações.

Há séculos, tirante Deus, ninguém lhe ordena a fazer nada.

Quando renunciou à vida de castigador, deixou para trás uma série de privilégios. Sabia que a jornada não seria nada fácil. Essa fase de readaptação é só o início das tantas dificuldades que terá de superar.

Terá de se acostumar com o fato de que muitos agora ao seu redor têm mais poder que ele. Não que não possa e não vá se fortalecer ali, mas terá que começar praticamente do zero.

E não é porque ele está em uma cidade de luz que estará livre de atormentações, tentações, provocações.

Ainda mais porque ele é Jhaver e não um espírito qualquer.

Três arcanjos já apareceram para testá-lo.

O primeiro foi Uriel, conhecido como o Anjo da Morte e do Arrependimento, aquele que preside à tempestade e o terror, tão desprovido de piedade quanto qualquer demônio. Foi ele quem avisou Noé sobre o Dilúvio, quem verificou as portas marcadas com sangue de cordeiro no episódio das Dez pragas do Egito e quem, na tradição apocalíptica, detêm a chave que abrirá o Inferno no Final dos Tempos.

Jhaver prosseguia pela estradinha que liga a Colônia dos Girassóis à Gruta da Sabedoria e o arcanjo, levantando uma espada ardente, plantou-se no meio de seu caminho. Eles jamais foram próximos. Embora Uriel, ao contrário de Gabriel, fosse o responsável pelas más notícias vindas do céu, não tinha autorização para castigar. É apenas o mensageiro da ira divina.

Cabe ao Conselho de Castigadores, o qual Jhaver presidiu por mais de dois séculos, executar tais ordens.

E a perfeição com que o anjo negro realizava seu trabalho sempre o incomodou. Afinal, sentia-se superior, por ser um arcanjo criado por Deus. Jhaver foi criado homem, passou por vários estágios até alçar o posto de anjo castigador.

O respeito e a grandeza que Jhaver conquistou sempre causaram desconforto em muitos, inclusive, em Uriel.

O ex-castigador desviou uma, duas, três vezes na tentativa de contornar aquele arcanjo, que desaparecia e tornava a aparecer bem na frente de seu caminho.

Foi quando na quarta, ao desviar mais uma vez, Uriel jogou o oponente ao chão. O empurrou e o tornou a empurrar quando ele conseguiu se levantar fazendo com que sujasse sua túnica.

Em seguida, o arcanjo pisou sobre ele obrigando-o a ajoelhar.

O castigador, mesmo sem jeito, ajoelhou-se, contudo, a situação o fez brilhar uma luz tão intensa capaz de assustar o arcanjo a ponto de mandá-lo embora.

Não externa mais aquela luz avermelhada do senhor dos castigos, porém, uma luz nova, bastante forte e clara, nascida com seus novos propósitos.

Da segunda vez, quem apareceu foi o arcanjo Ezequiel, ao qual foi confiada a custódia da transformação. Apareceu no quarto de Jhaver, quando este ainda dormia, envolto a um Fogo Violeta.

Ao acordar e ver aquele arcanjo, o anjo negro avançou sobre ele perguntando quem o autorizou a entrar ali.

Ezequiel elogiou o ex-castigador e disse que estava ali para fazer uma proposta. Queria que ele aceitasse um convite: entrar para sua legião.

Seria submisso as suas ordens, as suas leis, aos seus desejos e em troca teria perto de si o Fogo Sagrado. A energia de erros passados que ainda lhe traz sofrimentos seria transformada em amor da Chama Violeta, sem que ele sentisse qualquer dor e sem o padecimento que esse resgate está provocando.

Em outras palavras, tentou Jhaver a pular etapas de sua linha evolutiva.

Ele se negou.

Ezequiel, com toda sua mansidão, insistiu fazer com que o anjo negro aceitasse sua proposta. Mas não teve jeito. Diante de tantas recusas, deixou aquela casa com a fúria de uma explosão violeta.

Da terceira e última vez, foi à vez de Miguel, o senhor dos anjos, o guardião da fé, o soldado que expulsou Lúcifer dos céus.

Ao contrário de seus antecessores, Miguel não se fez de inimigo ou amigo de Jhaver.

Pouco falou. Simplesmente o levou para um lugar bastante ermo. Estava de volta ao altar dos castigos, ao templo dos sacrifícios. Ali Jhaver reinou como poucos.

O intuito era que Jhaver voltasse a sentir aquelas sensações e desejasse recuperar o que perdeu. Mais uma vez sua fé seria testada.

Como golpe final, colocou o anjo negro novamente frente a frente com seu chicote e disse de forma bastante seca:

- É seu.

Muitos tentaram, mas ninguém conseguiu sequer tocar naquele chicote.

Como foi feito a partir das vibrações do senhor dos castigos, aquele instrumento de flagelação poderia fazer com que Jhaver voltasse a ser o velho justiceiro de sempre ou, até mesmo, levá-lo à destruição.

O anjo negro fixa os olhos naquele chicote.

Não há Klaus, Sebastian, Franco, Ágatha, Perrot ou qualquer outro espírito ali. Só o anjo negro e Miguel, que observa tudo atentamente fazendo de seus olhos os olhos de Deus.


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