Daniel Campos

Imprimir Enviar para amigo
13/08/2010 - Capítulo 46

Paisagem surreal

Jhaver está em fase de depuração dos fluidos mais densos que adquiriu em sua jornada como Castigador e em sua estada no Umbral.

Ainda está bastante fraco e passa a maior parte do tempo dormindo. Nas vezes em que acorda, o faz de forma bastante assustada e sempre perguntado por Sebastian. Insiste que precisa falar com o promotor. Essa agitação toda prejudica seu tratamento.

A equipe de auxílio sempre o aconselha a se desligar das suas vidas e tarefas passadas. Tentando tranqüilizá-lo, informam que Sebastian está bem. No entanto, o anjo negro sabe que isso não é verdade.

O espírito de Jhaver progrediu muito nos aspectos intelectual, moral e espiritual tanto para chegar quanto para permanecer no posto mais alto da ordem dos castigadores. Era reconhecido como um espírito bastante culto e poderoso. Contudo, os últimos acontecimentos o fizeram perder um pouco a lucidez.

Fala coisas embaralhadas, não sabe responder certas perguntas, esqueceu-se de algumas passagens.

Também perdeu boa parte da visão. Enxerga apenas vultos. Talvez seja conseqüência do forte abalo sofrido em seu estágio vibratório durante as torturas vividas no Umbral. Ou ainda pode ter perdido parte de sua evolução quando renegou as ordens de Deus abandonando o posto de castigador. Ou seja, talvez seja castigo.

No hospital, Jhaver está praticamente isolado em uma ala. Sua presença causou alvoroço em alguns pacientes que estão ali justamente se recuperando de castigos ordenados por ele. Muitos se revoltaram com a presença de um castigador ali. Medo, ódio e revolta fizeram com que alguns regredissem e voltassem ao Umbral.

Tentando afastar o clima de insegurança foi redobrada a vigília em torno do hospital, pois a qualquer momento a instituição poderia sofrer um ataque de umbralinos com o intuito de resgatar aquele prisioneiro tão valioso.

Para piorar, muitos espíritos de luz continuam se negando a tratar de Jhaver. Afrânio tem cuidado diretamente dele. Além de passes que mexem com suas energias, oferece alimentos que o revigoram.

São manjares espirituais reconfortantes, que possuem gosto e aroma desconhecidos na Terra. Tem efeito sedativo, curativo e consolador.

Oferecem-lhe muita água fresca, cuja função é a de levar fluidos de luz para todo o corpo energético de Jhaver. Ao receber tais cuidados, ele dá alguns sinais de que irá se reanimar. Mas isso levará tempo. Ele ainda está muito esgotado e perturbado. Os últimos tempos não foram nada fáceis. E pelo visto, os novos também não serão.

Jhaver sempre se portou, seja pela aparência ou pelo comportamento, de forma bastante elegante. Palavras e gestos tão fortes quão requintados. Suas túnicas e capas estavam sempre alvejadas, engomadas e com um brilho especial. Seu cabelo comprido e viçoso. Unhas bem cortada. Dentes limpos e sadios. Asas imponentes. Olhos profundos.

Como parte das atrocidades do Umbral, seu corpo espiritual também sofreu danos.

Naquele leito de hospital, Jhaver nem parece o mesmo. São muitas as reações nascidas diante de uma transformação tão grande na imagem daquele que já foi o senhor dos castigadores, um anjo bastante próximo de Deus.

Perdeu as asas e o cabelo, suas roupas foram retalhadas e sujas, suas unhas ficaram escuros assim como seus dentes. Há feridas por todo o corpo.

No posto de socorro, recebeu provisões de roupa. Roupas foscas, coloridas em diferentes matizes de cinza.

A cor que vestiu por séculos quem sempre esteve entre o branco e o negro, entre o céu e o inferno, entre o bem e o mal. Jhaver, como castigador, era a ponte, que unia os dois extremos.

Muitos o chamam de anjo negro, em razão da sua cor de pele, a mesma de sua última estada na terra, no entanto, o correto seria chamá-lo de o anjo cinza.

Klaus o visita com freqüência. Dessa forma, afronta as ordens superiores de se manter afastado. Foi duramente repreendido pelas instâncias mais altas por ter ido ao Umbral resgatar Jhaver sem ter permissão para isso. No entanto, parece não ter se importado. Perdeu alguns poderes, ganhou algumas limitações, mas continua a cuidar do castigador.

Afinal, é preciso acompanhar de perto a recuperação Jhaver. Qualquer recaída poderá levá-lo de volta ao Umbral ou ao cargo do qual renunciou.

Uma renúncia que Klaus luta para ser definitiva.

Muitos apostam que todo esse esforço é em vão, já que a essência de Jhaver é de um castigador. Mais dia menos dia irá voltar a integrar o Conselho daqueles que castigam as criaturas criadas por Deus.

Há quem esteja disposto a fazer de um tudo para o anjo negro voltar à velha rotina e há quem trabalhe justamente pelo contrário.

A queda de braço em torno de Jhaver ainda irá nortear muitos capítulos.

Já na crosta terrestre, Sebastian tenta encontrar respostas para suas angústias que vão desde o sumiço de sua enteada até o estado do anjo negro, passando pelo sentimento de rejeição nutrido por sua esposa.

A campainha toca. São quase quatro horas da manhã. É Celeste que invade a aflição de Sebastian com a imensidão de seus olhos azuis:
- Chamou?

- Eu não...

A menina, vestindo um vestido da cor dos olhos, entra sem dizer nada. Desconfiada, senta no sofá, leva os olhos para longe na tentativa de entender o que a trouxe ali.

- Que história é essa? Brincadeira mais sem graça. Você me chamou aqui. Eu tenho certeza. Não me lembro se foi por meio de uma ligação telefônica, de uma mensagem de celular ou através de pensamento.

- Eu juro que não lhe chamei de forma alguma. Imagina se iria lhe perturbar no meio da noite. Melhor você voltar para casa. Sua mãe pode ficar preocupada.

- Já sou bem grandinha para minha mãe se preocupar comigo, não sou? Por ser filha de Gastón, um amigo seu, você não consegue me ver como mulher, não é?

Constrangido, Sebastian fica sem fala.

- Não era minha intenção lhe deixar envergonhado. No entanto, tem hora que esse tipo de tratamento me aborrece. Não sou mais uma menininha. Eu cresci. Ou por acaso acha meu corpo infantil?

Celeste cruza as pernas. O vestido sobe. Sebastian intervém:

- Pare com isso. O que está acontecendo. Você vem a minha casa em alta madrugada e fica falando um monte de besteiras. Se existe alguém fazendo alguma brincadeira de mau gosto aqui creio que não seja eu.

- Além de achar que minha aparência é de criança, agora diz que meu comportamento é infantil. Vai fazer o que agora? Dar-me umas palmadas, colocar-me de castigo?

- O que deu em você, hein? Sempre admirei a sua maturidade...

- Cansei de ser a certinha, a boazinha, a compreensiva.

- Olha, Celeste, não me leve a mal, mas não acha que este não é o momento para uma crise de identidade, uma revolta pós-adolescência? Estou passando por uma fase complicada, com muitos problemas. Por favor, vá embora. Outro dia prometo conversar com você sobre esses assuntos...

- Está me mandando embora. Acho que meu pai não irá gostar de assistir você me expulsando de sua casa, de sua vida...

- Nossa Senhora... o que há com você? Você veio aqui para me atormentar.

- E você não gosta de ser atormentado?

- Acho que se trata de mais uma investida dos umbralinos. Não sabia que eles podiam dominar uma médium como você.
- Umbralinos. Umbralinos. Umbralinos. Você não tem outro assunto? Por que não falamos de nós?

- Nós. Não existe nada entre nós e você sabe disso.

- Eu não sei de nada. Só sei que eu sou uma mulher e você é um homem. Estamos sozinhos, livres e apaixonados.

- Apaixonados? Que história é essa.

- Pensa que eu não sinto o jeito com que você me olha e me abraça e me quer...

- Imaginação sua. Eu tenho por você o afeto de um irmão mais velho. Sinto certa responsabilidade sobre você depois da morte de Gastón.

- Você quer ser minha babá? Quer que eu acredite nisso? Pensa que ao cuidar de mim sua culpa por ter matado meu pai vai desaparecer?

- Eu não matei seu pai!

- Tem certeza? Eu sei que no fundo da sua mente você não tem certeza de nada.

- Até então tentei ser educado. Mas agora já passou dos limites. Vamos, vá embora. É uma ordem.

- Eis o promotor imponente, arrogante e autoritário de volta. É assim que eu quero lhe ver. Firme. Decidido. Violento. Deixa essa máscara de espiritualizado cair. Não combina com você. Permita que o seu instinto lhe guie.

- Só pode estar possuída.

- E se estiver? Vai fazer o quê? Atirar água benta contra mim? Amarrar-me com um terço? Ou melhor, chamar padre Mariano?

- Meu Deus...

- Só uma curiosidade: que deus é esse que você chama? É o mesmo Deus que lhe abandonou? O mesmo Deus que mandou Jhaver lhe castigar?

- Que Gastón lhe ilumine e que...

- Pode parar. Já vai pedir socorro? Gastón ainda está desacordado. Não é fácil superar a morte violenta que você lhe proporcionou. Leva tempo. E seus outros amigos espirituais estão sofrendo as conseqüências das suas atitudes. Até Valentina, um poço de paciência, lhe renegou. Sua mulher, essa que você diz que tanto ama, não quer mais lhe ver. Quase morreu por sua causa e está muito descontente por você ter destruído a família dela. Portanto, sobrou-lhe quem? Eu!

Sebastian não se conforma com aquela conversa e com o comportamento daquela menina, no entanto sabe que muito do que ela diz é verdade. E isso o atordoa.
Ela tira o vestido. Não há nada por baixo daquele pano a não ser a sua pele clara que ganha os contornos das luzes daquele apartamento.

Sebastian fica sem reação. Não sabe mais o que fazer.

Os dizeres e gestos de Celeste vão se misturando na cabeça do promotor.

Ela vai dizendo que o ama desde vidas passadas, que sempre esteve ao lado dele, que ele sempre a recusou...

Fala, dança, gesticula até que cai ao chão.

Sebastian tenta levantá-la, mas ela o empurra.

Caída, arrasta-se por aquela tábua corrida. Pega papéis e canetas e começa a desenhar. Desenha prédios singelos e coloridos.

Ele tenta segurá-la, mas suas mãos não param. Parece até mesmo que não são suas mãos.

Depois do desenho feito, ela cai desacordada sobre a folha de papel.

Aquela imagem constrói um lugar na cabeça de Sebastian: La Boca. Um bairro pitoresco, tradicional dos primeiros imigrantes europeus. Famoso por suas casas multicoloridas, pelo clima nostálgico de seus bares e pelos tangueiros que sempre fazem apresentações ao ar livre.

É isso. Um sinal. É lá que está Micaela. Um sinal de Jhaver. Ele não pode vir, mas mandou um sinal.

Sebastian pega Celeste no colo e a coloca no sofá. Embrulha-a com um lençol. Não sabe ao certo o que aconteceu com ela, mas ao menos ela o ajudou. Não pode esperar que acorde, tampouco levá-la para casa. É preciso correr.

Ele acelera até chegar próximo ao porto, num bairro que foi habitado por muitos estrangeiros. Ele roda, roda, roda e chega ao Caminito, parte do bairro que foi restaurada. As casas são contruídas com tábuas de madeira, placas e telhas de metal e pintados com muitas cores.

De repente, vê Micaela, caída em uma das calçadas.

Não consegue parar em pé ou falar uma frase inteira. Está com a roupa rasgada, os braços esfolados e um cheiro de bebida.

Há alguns homens em volta dela. Eles, também bêbados, tentam impedir que Sebastian carregue a menina. Dizem que estão dispostos a pagar mais do que ele para passar o resto da noite com ela. Chamam-na de vadia, de gostosa, de drogada, de prostituta.

Tentando evitar mais confusão, ingora os insultos, a coloca no carro e pega o caminho de volta ao apartamento. Melhor não levá-la para casa de Malena ou para hospital para não ter que dar explicações. No outro dia, ele levaria a menina para fazer exames e teria uma conversa com Valentina. Além disso, recorreria a Justiça para ter a guarda dos enteados.

Ainda no carro, entre um delírio e outro, ela diz:

- Este filho não é meu. Não é meu. Por que tenho que carregá-lo. Ele é seu e da minha mãe...


Comentários

Nenhum comentário.


Escreva um comentário

Participe de um diálogo comigo e com outros leitores. Não faça comentários que não tenham relação com este texto ou que contenha conteúdo calunioso, difamatório, injurioso, racista, de incitação à violência ou a qualquer ilegalidade. Eu me resguardo no direito de remover comentários que não respeitem isto.
Agradeço sua participação e colaboração.

voltar