Daniel Campos

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10/05/2015 - Cão abandonado

Numa curva da estrada, um cachorro negro de peito imponente e olhar doce, como que esperando o que não há de chegar. Plantado naquela dobra do caminho, às margens do asfalto, emoldurado pelo capim entre o verde e o dourado que tomba ao vento. Tem mostras de que tomou todo o relento da última noite numa separação advinda do açoite. Ainda há sentimento em seus olhos, uma vontade de voltar para casa, mas cachorro não tem mapa interior nem asa. Ainda bem lavado, de pelo domado, espera por seu dono com olhares caídos de sono doídos de abandono. Não é filho, tem porte. Vontade de levá-lo, mas não é comigo que ele quer ir. Mas quem partiu não só para o norte, mas a sorte de um amor canino não há de vir. Até quando aquele cachorro ficará naquela curva? Quanto de sol, quanto de chuva vai tomar? Até onde aquele olhar doce vai aguentar? Logo ganhará carrapichos, costelas à mostra, indícios da tua solidão. Será que um dia ainda sentirá o gosto tão habitual da ração? E o cachorro afetuoso se transformará em um cão desgostoso capaz de morder. Morder para tentar aliviar o teu sofrer. Será que quem o deixou não sabe que ele nunca o deixará? Quem não acredita que bicho ama é porque nunca viu um cachorro chorar. E daqueles olhos negros escorriam as lágrimas do desassossego. Lágrimas de quem só conhecia a terra do quintal três por três. O que será que ele fez desta vez? Comeu um vestido? Mastigou um sapato? Fez xixi no tapete da sala? Latiu pro gato? Abriu uma vala? Quem é que não erra? Se é que errou... Só fez as cachorrices de sempre que sempre lhe renderam afagos e risos muito em razão de seu latido gago. Não sabe uivar, caçar, atravessar a pista. Ele nem entende o que está passando pela sua vista. Plantado ali, no meio do nada, numa curva da estrada, como árvore replantada que ou não há de vingar ou há de se transformar no que era.


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