Daniel Campos

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30/10/2010 - Cadê o rei do baile?

Hoje amanheci com vontade de comprar uma vitrola e um bom disco de Tião Carreiro. Hoje amanheci querendo voltar a um tempo que não volta. Hoje amanheci querendo ver aquelas canelas dançando ao som de um violeiro. Hoje amanheci querendo acordar dez anos atrás no Sítio Boa Vista. Hoje amanheci com um gosto danado de passado na boca, como se a saudade tivesse me roubado um beijo. Hoje amanheci com desejo de viver aquela alegria simples e inocente outra vez, pelo menos mais uma vez.

Hoje amanheci assoviando modas e mais modas de viola. Hoje amanheci gastando sola, querendo me encontrar com Tião Carreiro. Hoje amanheci querendo rir e, me embalar, me emocionar e chorar diante daquele cavalheiro que curvava damas e vassouras pelo salão. Hoje amanheci perguntando ao vento pelo paradeiro daquele dançarino. Hoje amanheci comprando costela pra churrasco, amassando limões pra caipirinha e quebrando o sol na palhinha do chapéu que me ensinaram a usar tão bem.

Hoje amanheci disposto a quebrar as leis da natureza, a virar o mundo de ponta cabeça até encontrar o velho que jamais envelheceu, até encontrar o morto que jamais morreu, até encontrar o rumo onde o rei do baile se meteu. Hoje amanheci falando grosso com Deus num vozeirão à moda Tião Carreiro, querendo tirar satisfação. Hoje amanheci dedilhando o violão na esperança dele surgir num acorde com seu bailado, com seu balançado, com seu olho orvalhado como mato depois de uma noite de chuva.

Hoje amanheci querendo encontrar tantas coisas que ficaram, mas só encontrei o canto da viúva, da viuvinha que dependurada na cumeeira cantava seu canto triste e forte, canto típico de quem chora a sorte ou a morte. Hoje amanheci me calando diante da viuvinha, que, negra de um luto que não termina, cantava a sina caipira de quem vai embora deixando pra trás um rastro que não se apaga. Hoje amanheci sob a lira da viuvinha, que cantava no mesmo tom de Tião Carreiro e de outros tantos carreiros que carrearam vida e mundo afora.


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