Daniel Campos

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Brasil: a grife da miséria


"Reze pelo Haiti, chore pelo Haiti, o Haiti é aqui, o Haiti não é aqui". Como esquecer os versos de Caetano quando o sentimento é o mesmo. Haiti? Brasil: país emergente, país do futuro, país das promessas e do crescente abismo social. Ricos, pobres (antigamente conhecidos como classe média) e miseráveis. Três classes, três sinas, três faces e um país.

Caro(a) leitor(a), creio que nunca sentiu a fome consumindo seu corpo, ainda tem um lugar para morar e uma renda que lhe permite viver, independentemente de quais forem as condições, mas permite. Entretanto deve ter percebido que a miséria está mais próxima. Basta andar pelas calçadas, principalmente as do centro da cidade, para perceber que não terá mais o mesmo passo despreocupado enquanto pensa longe ou admira alguma vitrine. Ao caminhar somos obrigados a desviar, não das pessoas que andam na direção contrária, mas das que fazem da calçada um ?ponto de esmolas?. Quantas as mãos estendidas, vazias e ociosas que pendem em nossa direção em busca de centavos de reais. Mãos da esmola.

As mãos se estendem quietas ou em palavras. Leite, remédio, aluguel... os fins são os mais variados. É claro que há também a malandragem, a vida fácil. Todavia, a situação é grave. Pessoas de rostos deploráveis, de vestes humildes, de olhos tombados. O choro das crianças e as rugas daqueles que não conseguem envelhecer em paz. As pernas trêmulas, o riso disfarçado em lágrimas e os seios secos. Todos na mesma calçada, no mesmo palco onde se encena a sobrevivência. Marias, Franciscos, Pedros, Joanas,..., em tantos rostos sem nome, sem história, sem sonhos. Rostos de um mesmo Brasil que finge não existir.

Ajudar? O fato de dar esmola não tem valor algum, posto que logo a mão que lhe pediu, irá fazê-lo novamente. O problema não é individual, engloba toda a sociedade. Essas mãos precisam de oportunidades e não de esmolas. Se o salário mínimo no Brasil já é uma vergonha, vergonha maior é não o ter. Vazias ou não, mas longe das sarjetas. Entretanto, as mãos da miséria não devem ser esquecidas, acariciadas ou pisoteadas.

O perigo é que convivemos com a miséria em nosso meio e começamos a achá-la normal. Até os que pedem começam a ver a esmola como profissão e deixam de trilhar ou reivindicar outra perspectiva. Cruzar os braços é um gesto que não permite às mãos a confortável condição de vítima. Milagre vem do céu e não das mãos do poder público.

E todos nós somos partes da miséria que se espalha pelas mãos alheias. Palmas, campainhas, gritos. Ao abrir a porta de casa, deparamo-nos com as mãos que imploram, estas são cada vez menos mãos bêbadas de cachaça. São bêbadas de miséria. Temos receio do rosto que nos pede, mas devemos olhá-lo não como rosto mendigo, mas como uma das faces do Brasil, uma face que se torna mais comum a cada dia. O Brasil de rosto maltrapilho, de traços indefinidos, de mãos pedintes é o mesmo Brasil que veste linho, anda de carro importado, bebe uísque. Brasil, uma grife que exibe a miséria em suas vitrines.

O que fazer? Num curto prazo não há solução. O irmão do Henfil, exemplo de luta a favor do ser humano, partiu na esperança de um desfecho feliz para o drama. Betinho trilhava o caminho da cidadania e não da caridade. Praticar a cidadania. Talvez seja esse o caminho para que as nossas mãos não sejam mais uma entre tantas mãos pedintes. Enquanto isso: reze pelo Brasil, chore pelo Brasil, o Brasil é aqui, o Brasil não é aqui.


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