Daniel Campos

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Bonecas

Ela, do alto de sua meninice, estatela os olhos diante das vitrines de uma loja de brinquedos. Entorta o pescoço pra lá, a cintura pra acolá e fica na ponta dos pés só para conseguir enxergar melhor a vida por detrás daquele vidro. Chega a ficar com os olhos parados e esquecer de todas as preocupações mundanas. Mas qual era o mundo daquela menina de seis anos senão os brinquedos? Mas sua mãe parecia não entender. A mãe tinha uma reunião com a diretoria da empresa, um telefonema para o exterior, uma aula de primeiro socorros para a renovação de sua carteira de motorista, uma massagem, um almoço com o pessoal da turma de espanhol e...

A cabeça cheia não a deixava compreender, tampouco enxergar a magia daquela loja onde os trenzinhos percorriam estradas de ferro rodeada de árvores, montanhas e túneis; ursinhos que diziam eu te amo em várias línguas; pelúcias de personagens dos mais famosos desenhos da sessão de desenhos de sábado e uma infinidade de bonecas. Bonecas que faziam xixi de mentirinha na roupa, bonecas que comiam papinha de mentirinha, bonecas que mudavam de mentirinha a cor do cabelo, bonecas que choravam e riam, também de mentirinha. Era um mundo de mentirinha, mas essas mentiras não eram maiores do que as vividas por sua mãe...

Mãe que puxa a menina pelo braço e perde a paciência. Estava levando a filha para a escola, a babá havia faltado sem avisar e complicado toda a sua vida. A mãe puxa e puxa e puxa, mas a pequenina parece hipnotizada por uma das bonecas. A mãe dizia não ter dinheiro, que a filha já tinha um monte de bonecas, que aquela boneca era sem graça... Desfiava séries e séries de argumentos para tentar tirar o gosto da menina pela boneca que tinha olhos azuis e cantava músicas de ninar em alemão.

Mas se não bastasse grudar os olhos na vitrine, a boneca se transformaria em seu único assunto. A mãe sabia que não fazendo a vontade da menina, ela deixaria de comer, de prestar atenção na escola, de rir e ficaria com a cara emburrada e com febre de lombriga... A mãe, para evitar futuros problemas, puxa a menina para dentro da loja. Pega um de seus cartões de crédito e compra a bendita boneca. Foi uma felicidade só. A menina que estava empacada diante da vitrine, agora queria correr.

A menina levou a boneca para a escola, para o apartamento onde moravam, para o playground do prédio. Três dias depois, deixou a boneca do lado das outras no quarto e estatelou os olhos para a mesma vitrine. Queria outra boneca, agora uma que ficava com as bochechas rosadas quando faziam cócegas em sua barriga. Aquela sua que cantava música de ninar em alemão já estava ultrapassada. Para evitar os mesmos futuros problemas, a mãe compra novamente a boneca. Eram tantas bonecas que a menina já tinha um quarto só para as suas bonecas.

E, nessa infância descartável, logo iria querer uma que andasse, uma que dançasse, uma que... Não conseguia amar nenhuma boneca por mais de uma semana. E um medo a rondava sem ser sequer percebido. O medo da menina, quando mulher, nunca conseguir amar ninguém por mais de sete dias.




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