Daniel Campos

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02/03/2008 - Beba Vinícius de Moraes

A lua me devora no céu. Tropeço em páginas escritas, mal-escritas e em branco. Corro para a sala. Caio entre versos de amor e de amor demais. Abro a porta da estante. Garrafas e mais garrafas. Preciso encontrá-la. Vinhos, conhaques, espumantes, vodkas... Ela tem de estar aqui... Eu tenho certeza de que ela... Ninguém mexeu aqui... Preciso ser rápido... Ah! Lá está ela... Uma garrafa de uísque quinze anos. Não há tempo para pensar. Tiro o lacre e despejo aquele líquido quente e encorpado em um copo largo. O vidro espesso e octogonal vai perdendo toda a transparência. Aquele álcool escocês escorre pelas bordas. Por maior o desejo, não o bebo. Eu não poderia... Não aquele uísque. Ofereço aquele líquido a um altar improvisado. Ao contrário de imagens, um livro de poemas. Seja como for, ofereço aquele uísque aquela espécie de orixá.

De repente, começa um redemoinho no fundo do copo. Aos poucos vai se formando a imagem de um homem no meio daquele oceano amarelado. É como se aquele uísque fosse o liquido umbilical que ligasse dois mundos. Sem mais apocalipses, um senhor de cabelos brancos e olhos longínquos emerge e sai daquele copo. Ao contrário de nascer um bebe, nascia um velho menino.

- Hum... Este é um legítimo 15 anos. Há tempos eu não tomava uma dose desses. Sabe como é Daniel, lá do outro lado essas coisas são mais complicadas. Mesmo a gente explicando que o uísque é o melhor amigo do homem, que é o cachorro engarrafado, a gente não consegue uma dessas. (Sem cerimônia, o homem degusta aquele uísque como algo sagrado e profano ao mesmo tempo).

- Vinícius de Moraes! Saravá poetinha! Sua benção!

Por mais que já tivesse feito isso outras vezes, a surpresa, a felicidade e a emoção me tomam e me regem e me dominam. Não há como evitar. É um medo e um desejo pulsando dentro em mim.

- Que a poesia o abençoe. Afinal, a gente não faz amigos, reconhece-os.

- Que bom que você veio...

- Espero que tenha uma boa razão para ter me chamado. Afinal, eu estava deitado em uma rede, vendo as mulheres-anjo passando num doce balanço a caminho do mar... Estou vivendo as minhas tardes com um velho calção de banho num paraíso digno de Itapuã... Além do mar, há coqueirais e uma lua morena... Para vir aqui precisei deixar tudo isso e trocar de roupa... (Vinícius fala isso e gargalha baixinho).

Antes de sustos e maiores perguntas, esclareço: Vinícius é uma espécie de mentor poético deste que vos escreve. A ligação poética é tão grande a ponto de ter sido criado um canal de comunicação entre nós. Foi Vinícius quem me despertou para a poesia. Foi nele que bebi a poética da vida. Foi nele que me segurei todas as vezes que me falavam que o grande amor não existia. A obra de Vinícius foi o que me fez caminhar, o que me fez acreditar no amor sobre-humano e me fez ser o que sou. A morte não conseguiu acabar com essa sintonia de vocação. Vocação para amar demais e escrever o amor. Eu já conheci Vinícius morto. Ele se foi depois de um mês do meu nascimento. No começo, não o perdoava por ele ter subido tão cedo. Mas depois percebi que ele estava mais presente do que nunca.

- Vinícius, meu poeta camarada, chamei-lhe aqui porque estou preocupado com a falta de poesia deste mundo. Não agüento mais tanta brutalidade, tanta comercialidade, tanta superficialidade. Está insuportável viver aqui. É preciso fazer algo. É preciso resgatar o amor. E acho que só você pode dar um jeito nisso...

- Sabe quem eu vi ontem? (Vinícius volta os olhos para o copo e desconversa).

- Quem?

- O Tom. Continua o mesmo. Está morando do lado de uma matinha de árvores imensas. Acredita que ele fez um puxadinho e colocou um enorme piano de cauda lá. Ele passa o dia naquelas notinhas pretas e brancas, observando macucos, matitas perê...

- Que bom que ele está feliz. Faz tempo que ele não vem aqui. Dê os parabéns a Jobim, afinal a Bossa-Nova está fazendo 50 anos!

- Pois é Daniel, o tempo passa como um rio. Mas a bossa continua mais nova do que nunca. Ontem mesmo coloquei letra em uma musiquinha do Tonzinho. Pena que você aposentou o violão, caso contrário eu ia te mostrar... Ela fala de um cupido que se apaixonou, mas ele havia gastado todas suas flechinhas com os outros. Ficou sem nenhuma para acertar a mulher-anjo que estava lhe tirando o sono... E isso o fazia sofrer muito... Mas muito mesmo... No final da letra, chega à primavera e ele percebe que não precisava das flechas... Que tudo acontecia naturalmente...

Vinícius estava bem. Iluminado. Poético. Apaixonado. Chegou todo de branco, de pés descalços e camisa com alguns botões abertos. Aquele corpo que se casou nove vezes havia ficado nas mãos longas dos adeuses, mas sua alma, ou melhor, sua poesia estava mais presente do que nunca. Se o amor é fantasia, como ele costuma dizer, afirmo com toda certeza que Vinícius está em pleno carnaval.

-Sabe parceirinho, empresta aquele livrinho ali. (Vinícius aponta para o altar improvisado que fiz e pede o livro. Era uma de suas antologias poéticas. Ele folheia o livro como quem procura algo).

- Depois que a gente morre algumas coisas se perdem da memória da gente. Dia desses fiquei com vontade de citar esses versos para um amigo e não me lembrava. Mas agora vou declamar esses versinhos em homenagem à lua que está tão companheira hoje. Lá onde estou, dá para gente sentir o cheiro da lua. E ela tem um cheiro de mulher, de fêmea...

Vinícius bebe mais um dedo de seu uísque e se entrega às palavras do poema A Rosa de Hiroshima:

- Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada.

Silêncio! Os olhos enchem de um contentamento descontente, de uma dor que desatina sem doer, de um não querer mais que bem-querer...

- Ah! Sabe o que consegui esta semana lá em cima ? uma banheirinha. Ah! Que saudade eu estava de uma banheira. Passo horas lá pensando, sonhando, olhando para as estrelinhas...

- Só você mesmo para mergulhar fundo no sentimento e depois brincar com a vida de forma tão amena. Em sua existência, o exemplo do amor a cada detalhe, a entrega plena a cada momento, o coração trabalhando em ritmo total segundo após segundo...

A conversa prossegue e o líquido vai se esgotando no copo. O uísque se esvai, alimentando aquela espécie de divindade. Em breve, Vinícius terá de ir embora, voltar para a sua banheira, para a sua rede...

- Eu podia ficar aqui a noite toda, mas você sabe que eu preciso subir... Estão me esperando com uma canjinha de galinha de dar água na boca...

- Fica mais um pouco Vinícius...

- Não posso. São as regras lá de cima... Por hora, parceirinho, muito obrigado pelo uísque e continue firme em sua caminhada poética... Estou sabendo das suas novidades... Um dia a gente volta a se encontrar... Afinal, a vida é a arte do encontro embora haja tantos desencontros pela vida.

- Mas Vinícius, e o problema da falta de amor no mundo? O que eu faço?

- Lembre-se da rosa de Hiroshima. Faça das Hiroshimas da vida um canteiro de rosas. Esta era uma missão dos seres-humanos que com o passar dos anos acabou ficando restrita aos poetas... Cabe a nós, poetas, sermos guardiões deste mundo de sentimentos... Lembre-se que foi com as lágrimas do tempo e a cal do meu dia que eu fiz o cimento da minha poesia...

- Obrigado, Vinícius. Saravá!

- Saravá! A benção, que eu vou partir. Eu vou ter que dizer adeus...


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