Daniel Campos

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27/04/2008 - Águas de março, abril, maio...

Era final de abril, quase maio, mas lá fora chovia o restante das águas de março. Cá dentro, eu cochilava nos braços de Marilene, inebriado em seu perfume de anjo. O frio carregado pelo vento nascido da chuva nos levava a um ninho feito de cobertas e carícias. E o clima de romantismo ecoava um canto vindo de algum pássaro. Mas que pássaro cantaria debaixo daquela chuva toda e ainda mais com aquelas notas? A melodia dizia "encontrei em você a razão de viver e de amar em paz e não sofrer mais, nunca mais".

Antes que eu pudesse pensar que tudo não passava de um sonho, alguém bate na porta da sacada do quarto. Isso mesmo. Tinha alguém na sacada. Será ladrão. De qualquer forma, não havia muito mais o que fazer. Era uma porta de vidro, continuação de uma imensa janela translúcida. Mas quem haveria de estar naquela na nossa sacada no meio daquela água toda. Não dava tempo de chamar a polícia, tampouco de tentar sair do quarto. Qualquer gesto mais brusco poderia custar nossa vida. Alguém estava ali. Mas um alguém que não é capaz de quebrar o vidro ou de pular a janela, que estava entreaberta. Educadamente, este alguém bate à porta.

Mesmo com todo receio e advertência de Marilene, pulo da cama e abro a porta. Não agüentava mais aquela agonia de não saber. Para meu espanto, do outro lado, um homem de chapéu panamá e flauta prateada na boca. Por mais incrível que pareça, era Tom Jobim. Estava de óculos e com uma roupa de cor pastel. Entrou todo acanhado, mas com ar de felicidade. Nem mesmo a ocasião ou a chuva (que lhe molhou todo) impediam sua flauta:

"O...lha, está chovendo na roseira
Que só dá rosa mas não cheira
A frescura das gotas úmidas
Que é de Luísa, que é de Paulinho,
Que é de João - que é de ninguém"

Eu olhava Marilene. Marilene me olhava. E nós dois olhávamos Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim que, como um pássaro, pousou em nossa janela e entrou em nosso quarto. Difícil de acreditar. Mas aquilo não era questão de acreditar e sim de viver. A alma jobiniana soprava por entre aquela flauta e nos banhava de emoções únicas. E olha que eu e Marilene não bebemos vinho ou qualquer coisa parecida. Estávamos sóbrios e de olhos bem abertos. Tinhamos duas opções: ou era realidade ou alucinação coletiva.

Depois de terminar de tocar "Chovendo na Roseira", ele sorri, estende a mão e nos cumprimenta. Disse que estava voando e foi obrigado a parar em nossa janela por causa da chuva. Desculpou-se pelo susto, mas disse que já nos conhecia. E por isso se sentiu seguro em bater em nossa porta. Já nos conhecia? Vinícius de Moraes já havia falado de nós para ele (Ah! Para quem se espanta, o poetinha costumava vir me visitar, vez ou outra, para bater-papo e beber um uisquizinho). Graças à chuva ou a Vinícius, Tom estava ali, diante dos nossos olhos boquiabertos.

- Posso lhe chamá-lo de Tom?, gaguejei meio sem jeito. Estava nervoso, afinal, o maior maestro do mundo estava no meu quarto e eu estava de pijama. Se soubesse que viria, teria feito recepção de rei. Mas tom não queria ser rei, queria ser pássaro.

- Helena (irmã de Tom) é que me deu o apelido de Tom. Ela não conseguia dizer Antônio Carlos, então me chamava de Tom-Tom, Tom-Tom... Virou Tom. Mais tarde, os caras vieram me dizer que Tom era um nome americano como Johnny Alf ou Dick Farney. Tive que carregar essa cruz. Lutei muito para ser Antônio Carlos, mas não consegui. Ninguém vai chamar um cara de Antônio Carlos se pode chamá-lo de Tom.

Diante da resposta, tentei chamá-lo de Antônio, mas Tom Jobim era mais forte, mais sonoro, mais pássaro. E ele não se importava. Afinal, Helena o batizou, mas o mundo o imortalizou Tom.

- De onde você veio Tom, desculpa Antônio, aliás, vou lhe chamar de música, porque é isso que você é. Música, de onde esse vôo o traz?, indagou Marilene.

- Muito obrigado pelo Música, mas não acho que mereço tanto. Afinal, diante de toda música, sou apenas um tom. (Risos) Quando uma árvore é cortada ela renasce em outro lugar. Quando eu morrer fui para esse lugar, onde as árvores vivem em paz. Eu morri, mas a música ficou.

- E o que você levou daqui?

- A gente só leva da vida a vida que a gente leva, respondeu com ar de satisfação.

Puxei uma cadeira para acomodar o maestro. Afinal, devia estar cansado de voar. Ainda mais voar molhado. Não devia ser nada fácil. Marilene trouxe umas toalhas de banho para ele se enxugar. E eu tratei de providenciar um charuto e um uísque para aquecer os pulmões e a alma daquele pássaro.

- Bem que o Vinícius me disse que o tratamento aqui é de primeira qualidade. Acho que vou pousar mais vezes nesta janela, riu Tom. Aliás, já vi que vocês tem uma gaiola vaga ali na sacada. Acho que vou passar umas férias por aqui.

- E a Bossa Tom, como vai? Você acha que o Brasil depois de cinqüenta anos entendeu o que você, o João (Gilberto), o Vinícius queriam falar com aquela nova musicalidade?, perguntei.

- No piano sempre procurei uma harmonia, uma coisa boa. Eu não ia fazer uma música para incentivar o suicídio, para arregimentar o ódio, nem para conduzir à droga. Nós temos uma responsabilidade. Não posso fazer uma música que leve alguém à desgraça. A música tem que levar ao reflorestamento, ao amor aos bichos e à família. Aquele negócio que o Caetano Veloso disse sobre a Bossa Nova: "O Brasil tem que merecer a Bossa Nova". A gente tem que merecer a Bossa Nova: ter uma mulher bonita, ir à praia, talvez um dia ter um barco, navegar num barquinho azul. O conselho da Bossa Nova é de levar a pessoa à vida.

- E a humanidade diante desse conselho?

- O homem inventou estradas, auto-estradas, um caos. Não se pode andar na rua e, de carro, então, nem se fala. Foi a inteligência que nos levou a todos esses absurdos. A destruição da natureza, a violência, o banditismo. Como diz Nole Rosa: "Mas a filosofia hoje me auxilia a viver indiferente assim. Nessa solidão sem fim, vou fingindo que sou rico para ninguém zombar de mim". E continua Noel: "Quanto a você, da aristocracia, tem dinheiro, mas não compra a alegria. Há de viver eternamente sendo escravo dessa gente que cultiva a hipocrisia". O cultivo da hipocrisia chegou a um ponto em que o país ficou de cabeça para baixo. Quando o dinheiro é tudo, a vida vira a maior chatice.

- Mas você nunca foi um homem de negócios...

- Eu não sou homem de negócios, não tenho apartamentos alugados, nem terrenos. O dinheiro que entrou foi para a casa, o carro, o uisquinho, a cervejinha, brincou Tom. Tom bebia muito chopp e cerveja. Foi Vinícius que enveredou seu caminho para o lado do uísque.

- Os poemas do Daniel têm muito de você, do Vinícius. Aliás, ele nunca escondeu que se inspirou muito em vocês, em suas músicas, em suas poesias...
Essa proximidade natural é muito interessante.

- Sei disso. Mas melhor você tomar cuidado por que seguindo eu e Vinícius ele vai acabar no charuto e no uísque. Mas esse negócio de poesia acho que nasce um pouco com a gente. A gente é poeta ou não. É um pouco uma herança, uma maneira de ver o mundo.

- Essa maneira de ver o mundo que fez de você um ritmo à parte. Suas músicas nos convidam ao amor demais e ao sonho demais. Aliás, essa intensidade toda presente em suas músicas nos dão asas e um céu azul. Isso eu acho fantástico, comentou Marilene, já mais a vontade com a visita.

- Minha música é essencialmente harmônica, sempre procurei a harmonia. Parece que eu tentei harmonizar o mundo. O que é evidentemente uma utopia. Porque os jornais, por exemplo, sempre falaram mal de mim, inventaram um monte de coisas. No entanto, minhas músicas são executadas no mundo inteiro. O mundo inteiro gosta, mas o mundo inteiro não é utópico. O que é utópico é o Brasil. O Brasil é a grande utopia. É o paraíso.

- E o Brasil, quinze anos depois de sua passagem, continua esse paraíso?, provoquei.

- O Brasil não é para principiantes.

- Como assim?

- Este é um país em que as prostitutas gozam, os traficantes cheiram e em que um carro usado vale mais que um carro novo. É ou não é um país de cabeça para baixo?

- Você ainda tem mágoa?

- Mágoa não, mas sempre carreguei nas costas a cangalha de fazer música brasileira e sempre me acusaram de ser estrangeiro. Se bem que no Brasil é tudo importado: eu, você, a língua, os índios, a cana-de-açúcar e o café.

- Diante disso, o verso que fica é "tristeza não tem fim. Felicidade sim".

- Esse é muito bom, um achado. Mas acredito que o verso que fica é: "Fundamental é mesmo o amor, é impossível ser feliz sozinho".

De mãos dadas com Marilene, brinco com o maestro:

- E nós, a cada dia mais, fazemos mais jus a esse verso, ou melhor, aos ensinamentos da sua parceria com Vinícius.

Tom traga o charuto e com um sorriso de fumaça diz:

- Nada melhor para a saúde do que um amor correspondido.

E nada melhor para um amor correspondido do que boa música. Tom pega sua flauta e nos brinda com sua melodia. Dos sopros nascem notas. E das notas nascem poesias:

"Estrada branca, Lua branca, Noite alta, Tua falta
Caminhando, Caminhando, Caminhando, Ao lado meu
Uma saudade, Uma vontade, Tao doída, De uma vida,
Vida que morreu"

Não agüentei e comecei a dançar com Marilene em cima da cama. E, mesmo assim, eu consegui pisar em seus pés. Mas a melodia mexia com todas as minhas células, entrava por cada poro, sacudia meus pensamentos, reafirmava meus sentimentos. Tudo era festa dentro de mim. E os olhos de Marilene demonstravam a mesma reação. Ela era como uma música recém saída da flauta de Jobim. Melódica, linda e harmônica. Ao som de "Chega de Saudade", Tom foi percorrendo os cômodos da casa até chegar à porta.

"Chega de saudade a realidade
É que sem ela não há paz, não há beleza
É só tristeza e a melancolia
Que não sai de mim, não sai de mim, não sai"

Ele andou pelos corredores, desceu as escadas, passou pela portaria do prédio. Eu e Marilene, devidamente trajados com roupa de dormir, fomos atrás dele. Ele nos levou até a rua, como que nos encantando com a magia de sua flauta. Há os encantadores de serpentes e há os encantadores de sonhos. Tom se enquadra no segundo caminho. Voamos, flutuamos, volitamos. Ao chegar à rua, Tom enfiou a mão no bolso da calça e tirou um imenso piano de cauda. Seria o absurdo do absurdo se não fosse Jobim. Mas era ele e ele podia tudo.

"Eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida eu vou te amar
Em cada despedida eu vou te amar
Desesperadamente, eu sei que vou te amar"

Tom sentou em uma banqueta e começou a tocar e cantar, com a voz forte de sempre, que de tão forte pediu licença à chuva. Estávamos em Brasília, mas a voz de Tom além de pausar a chuva, trouxe para ali o Corcovado, o Pão de Açúcar, a Baia de Guanabara, as palmeiras e os macucos do Jardim Botânico. E todos, num só coro:

- Que saudade Tom...

O maestro brasileiro respondia com música:

"E cada verso meu será
Prá te dizer que eu sei que vou te amar
Por toda minha vida
Eu sei que vou chorar
A cada ausência tua eu vou chorar
Mas cada volta tua há de apagar
O que esta ausência tua me causou"

Eu e Marilene, no mais completo feitiço jobiniano, cantávamos, sonhávamos, chorávamos, jurávamos, beijávamos, paquerávamos, namorávamos, amávamos...

E tom, cada vez mais forte, cada vez mais melódico, cada vez mais luz, como se fosse uma aurora boreal ali, no meio do Planalto Central...

"Eu sei que vou sofrer a eterna desventura de viver
A espera de viver ao lado teu
Por toda a minha vida"

A rua povoada de magia e deserta dessa gente que anda por ai. Eu e meu anjo lilás no sonho mais acordado ou no acordar mais sonhado de nossas vidas.

Ao terminar de cantar "Eu sei que vou te amar", Tom se levantou e conduziu Marilene a sentar em seu lugar. Ela, tímida e assustada, disse que se debruçou muito naquelas notas, mas foi lá pelos seus quatorze anos.

- Coincidência. Tinha uns 14 anos e já não saía mais do piano. A vizinhança reclamava, mas as casas eram grandes, em centro de terreno, e eu ali batucando aquele piano na garagem. O som se espalhava muito porque as paredes eram de cimento. Koellreuter (professor de Tom) era uma alma boa e muito exigente. Me ensinou muita coisa prática, me ensinou assim por alto esse negócio de 12 tons, de não ser tonal, de não ter uma tonalidade principal e usar os doze sons do piano.

- Mas eu sei que você nunca se contentou com os 12 tons... disse Marilene.

Tom desliza as mãos pelas notas do piano, produzindo um vento que trouxe o prenúncio do sol e confessou:

- Um dia, almocei com Koellreuter, na Plataforma, e mexi com ele: "Como é, você continua nos 12 tons?" Ele disse: "Claro, e você?" Bom, eu estou usando 35 agora, que são os sons da música clássica.

Tom era isso. Popular e clássico ao mesmo tempo. Tom era sentimento e o sentimento não cabia em 12 tons. Se ficasse naquela dúzia de tons, não seria Tom Jobim.

Ainda um pouco amedrontada, ela tocou as brancas e as negras daquele piano e cantou:

"A correnteza do rio vai levando aquela flor
E eu adormeci sorrindo
Sonhando com nosso amor
Sonhando com nosso amor
Sonhando..."

Eu aplaudi. Tom aplaudiu. Curioso. Eu não contei nada que Marilene tocava piano. Como aquele pássaro descobriu? Seja como for, ele sabia o que dizia...

- Agora eu quero ouvir algo do seu repertório... Afinal, preciso ir... O charuto está acabando e os pássaros me esperam. Só que queria ir ao som da música de um anjo...Aliás, como o Daniel diz em seus poemas, ao som de uma "mulher-anjo". Muito obrigado pela conversa e pela acolhida. Qualquer dia, eu volto a pousar na janela de vocês.

Marilene respirou fundo, fechou os olhos e suas mãos ganharam palavras e sua boca deu à luz a uma magia delicada e forte, assim como ela.

"No mar navega o barco
No barco navega o vento
Nas ondas dos teus cabelos
Navega meus pensamentos"

E como que aproveitando a enxurrada, Jobim entrou num desses barquinhos de papel e navegou pelo seu mar azul. Entre pau e pedra, entre o fim do caminho e um resto de toco, entre um pouco sozinho e o caco de vidro, entre a vida e o sol, entre a noite e a morte, entre o laço e o anzol, Jobim se transformou em barqueiro deslizando naquele mar que conhecia tão bem. O mar das águas de março. Jobim se foi, mas deixou uma promessa. Uma promessa de vida.

"São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração
Pau, pedra, fim, minho
Resto, toco, oco, inho
Aco, vidro, vida, ó, côtche, oste, ace, jó

São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração".


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