Daniel Campos

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A nudez de um encanto

Noite. Noite qualquer. Embora noites tenham sempre algo que foge do qualquer. Calada, sem mais anunciações, surge a lua. Surge sozinha em si e sem ninguém por perto. Surge nua, simplesmente lua. Lua nua lua, rimas perfeitas. Se surgisse cheia de enfeites talvez não tivesse graça e, sobretudo, mistério. A nudez da lua é a nudez a ser perseguida pelas criaturas femininas. Lua que surge com o corpo despojado (inteiramente nua) e passa coberta de lembranças, profecias, mistérios. Enfim, coberta com sua própria nudez.

Enquanto a lua escorregava pela escuridão, surgia, em algum tempo, em algum espaço, a mulher que passava com a nudez de uma lua. Surgia com o glamour de uma personagem principal. Surgia como personalização feminina, já que a lua andava com ares abstratos. Uma personagem que, feito à lua, surgia nua em mistérios. Surgia e passava com os olhos fartos de encantos. Olhos quase negros. Olhos quase esotéricos. Olhos totalmente nus. Passava e deixava a impressão de que ao contrário da lua, seus segredos eram possíveis.

Surgia inesperadamente e indiscutivelmente nua, como a lua, naquela noite qualquer. Surgia com beleza e movimentos próprios. Surgia e passava com olhos desprotegidos. E como todas as criaturas que têm vida própria, ela não se deixava reger por nenhuma força que não fosse a sua própria vontade. Em seus olhos, uma suavidade e uma acidez marcante. Passava e seus olhares se dividiam em fases.

Olhares cheios, minguantes, novos e crescentes.

Sem previsões apocalípticas, a nudez explícita em seus olhos deixou de existir. Surgia com os olhos cobertos. Surgia de óculos. Não que fosse recomendação médica, afinal era apenas um desses óculos de design contemporâneo que se transformara em tendência. Talvez uma tendência de verão. Óculos multicoloridos, arrojados e frios. No mais, um acessório como tantos outros dispensáveis às criaturas como a nossa personagem. Um acessório que conseguiu roubar a beleza nua, secreta e possível daqueles olhos arredios.

Talvez, ela os usasse por razões estéticas. Embora o desenho desses óculos confundisse os traços de seu rosto. Traços que um dia traçaram os caminhos que se vão. Que se vão longe, num silêncio machucado. Passado. Daquele momento em diante, os olhares se transformariam em lembranças. E se não tivesse relação com a estética? E se fosse por medo. Medo! Medo da realidade. Sendo assim, usava os óculos para se proteger. Assim, podia se esconder da vida que se fazia do outro lado daquelas lâminas. Ninguém conseguia chegar até seus olhos e, portanto, ela não corria risco algum de sofrer.

Vinha com olhos vendados. Vinha com olhos intransponíveis. Vinha com olhos vazios. Não, os seus olhos não minguaram até desaparecerem, mas se aprisionaram atrás de uma lâmina sintética. Chegava ao fim toda a nudez de um encanto.

Hoje, não há mais paridade entre ela e a lua. A primeira continua a passar por meus olhos com sua nudez. A segunda, com os olhos escondidos, passa como um eclipse. Passa sem os mistérios que a ciência não consegue decifrar. Definitivamente, ela passa incompleta. Mas como o eclipse ela tem lá sua beleza. Só que agora, deixa algo que não deixava antigamente (quando passava com os olhos descobertos). Deixa saudade. Saudade do tempo em que vinha com os olhos nus. Olhos que só eram cobertos por mistérios.


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