Daniel Campos

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22/06/2008 - A cinderela e o bêbado fulano de tal

São três horas da manhã. A cidade dorme. E pelas ruas, um bêbado fulano de tal caminha com uma sandália nas mãos à procura de sua cinderela. Ó noite fria! Ó busca bela! Como soluços compassados, os carros passam com faróis atordoando os olhos já atordoados do bêbado que tropeça sem chapéu e sem bengala por linhas que a cigana charlatã não dá conta de ler. Não, não era Chaplin ou qualquer outro personagem famoso de cinema ou teatro. Era um astro das calçadas, mas não passava de um anônimo fulano de tal com a promessa de um romance nas mãos.

No início do dia, foi demitido. Na hora do almoço, foi traído. Na hora do jantar, foi banido da própria vida pelo orgulho besta de quem não tinha mais emprego, de quem não tinha mais família, de quem não tinha mais dinheiro, de quem não tinha mais moradia, de quem não tinha mais talão de cheque, de quem não tinha mais frango com champignon, de quem não tinha mais um travesseiro para dormir tranqüilo, de quem não tinha mais compromisso com nada nem ninguém.

De bar em bar, de cachaça em cachaça, de promessa em promessa saiu pela rua de lua alta cruzando esquinas, procurando as meninas dos seus olhos que rolaram pela escadaria de um tempo aquém ou além de seu entendimento. Ah! Pobre bêbado fulano de tal, nem desejava tanto, queria só metade. Metade de uma cama para dividir com a pessoa amada. Metade de uma maçã para pecar em conjunto com sua Eva. Metade de uma vela para velar seu defunto pouco. Ah! Mas essas metades eram demais para serem ofertadas a um moribundo apaixonado.

No cruzamento da rua do passado imperfeito com a do futuro do pretérito ele caiu. Mas o que há de novidade em um bêbado cair? Pode não haver nada incomum, mas o bêbado apaixonado fulano de tal caiu e mudou sua vida, e mudou seu estado, e mudou seu destino. No chão, diante de seus olhos, como um arranha-céu, um salto o levava a uma sandália. E não era um sapato de cristal. Mas era um sapato cravejado de perfume a ponto de ele sentir ciúme do homem que, algum dia, possuiu os pés daquela mulher.

Os vigias cochilam ameaçando o sono seguro de quem dorme. Os pedestres cochilam para alegria do nosso personagem, que caminha em zigue-zague pelas calçadas. Os cachorros cochilam para alegria dos gatos que se equilibram nos muros e se esfregam com suas gatas. As viaturas, depois de tanto zumbirem, estão quietas. E nos carros que ainda soluçam, cada vez mais espaçadamente pelas ruas, há pessoas mais bêbadas do que o bêbado fulano de tal. E tudo é tão normal. E tudo é tão natural. E tudo é tão banal. E tudo é tão... que o bêbado procura num pedaço de jornal velho o rosto da dona daquele sapato. Mas, para fins de decepção, não há notícia de roubo, de perda, de furto sobre sandália alguma.

Sem saber para onde ir e cansado de esperar pela vinda da mulher que calçaria aquele sapato e se enfeitiçaria por ele, em um amor sobrehumano, o bebâdo levanta-se e parte rumo ao sem rumo. Como um cão maldito, impregna suas narinas, seus pulmões, suas artérias e embarcações de átomos naquele aroma de café com flor de laranjeira e gotas de açúcar com pitadas de anis vindo da sandália e sai pelas ruas farejando alguma pista sobre a dama descalça. E quem era essa dama? Poderia ser uma mulher qualquer ou qualquer mulher. Poderia ser uma menina, uma felina ou uma mulher da esquina. Poderia ser uma intelectual que recitava Fernando Pessoa ou uma bêbada fulana de tal que passava como o nosso bêbado fulano de tal. Poderia ser uma mulher pássaro ou uma mulher cobra. Poderia ser uma mulher estranha, uma mulher aranha, uma mulher imprópria e até sua própria mulher. E mesmo com todas as dúvidas, com todos os ricos, com todos os destinos abertos como feridas, ele queria seguir.

A cidade estava escura. As portas estavam fechadas. As vidas estavam trancadas dentro de si. Mas o bêbado fulano de tal queria mergulhar em um mundo escancarado. Foi então que de campainha em campainha, de abelha operária em abelha rainha, de janela em favela, de portão em alçapão mergulhou à procura de seu pai perfeito. Queria que a tal mulher viesse ao seu encontro, surgida do nada, só com uma sandália calçada em um dos pés. O outro pé, o nu, iria ser a resposta para o seu futuro. E olha que há muito tempo ele não tinha futuro. Tinha um passado que não lhe valia de mais nada e um tempo presente totalmente infértil. Nada que plantava em seus dias, nascia. Por isso a colheita do sapato mexeu tanto com ele.

Mas quem esperava receber um beijo apaixonado, um abraço apertado, um suspiro alongado, recebeu xingos, broncas, gritos, ameaças, baldes de água na cabeça, tiros de garruncha e outros sapatos atirados em sua direção. Só que agora, os sapatos não eram perfumados, tampouco apaixonantes como aquele que levava em suas mãos. Diante da gritaria, os vigias acordaram, a polícia esperneou e os carros soluçantes começaram a buzinar. Foi um escândalo tão grande que o homem teve que fugir. Na fuga, trombou com latas de lixo, cortou jardins, pulou muros e deixou o sapato cair. Escapou da polícia, mas ficou sem o sapato.

Ainda escondido em um beco, no meio de vários sacos de lixo, foi espiando a sua volta como um rato. Antes de sair daquele inferno astral, passou em sua frente uma mulher de plástica e arquitetura imperfeitas. Tinha olheiras, cabelo descuidado e lábios empalidecidos. Veio em busca de algo para comer no lixo. No entanto, a brisa que a lambia espalhava um cheiro de café com flor de laranjeira açúcar e anis pelo ar. Era inebriante e angustiante, de tão enigmática. E ela andava torta, com um pé no céu e outro no inferno. Tudo isso porque faltava uma sandália. Um pé calçado e o outro nu.

Mesmo sem o sapato, ele pensou em arriscar e se declarar na busca por um final feliz. Foi quanto partiu mirando aquela mulher, que mordia o resto de uma maça, mas se conteve e voltou. Se ao menos fosse primavera, o amor entre a cinderela e o bêbado fulano de tal seria mais possível de existir... Mas era inverno. E no inverno tinha uma impossibilidade, um agouro, um desencontro de natureza. E ele não tinha dose alguma de cachaça para quebrar o frio e a impossibilidade da cena. Pobre bêbado, teria de se contentar com a perda.

Ah! Como ele queria ir ao seu encontro. Mas ao se separar da sandália perdera sua cinderela para sempre. Afinal, sem o sapato, assim como o restante de sua vida, aquela mulher não passava de uma gata borralheira. E sem a magia da cinderela ele seria condenado a ser eternamente um sapo fulano de tal. Se ela ao menos ela o beijasse e ele se transformasse em um príncipe. Contos de fada à parte, a promessa de amor entre a cinderela e o bêbado fulano de tal virou uma abóbora, a noite virou uma madrasta má e sua sorte, um pântano de coachos bêbados.


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