Daniel Campos

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17/03/2010 - O último capítulo

Dia 9 de fevereiro de 2010. Depois de seis meses, meus pés tocam novamente aquela terra vermelha. Dava para sentir boa parte de minha infância e juventude misturada aquele chão. Quase trinta anos de uma forte convivência com aquele lugar que acostumei a chamar de sítio do vô Libio. Quantas histórias vividas ali? Impossível calcular. Mas todo livro precisa ter um último capítulo. E o meu foi escrito naquela terça-feira gorda.

Liberato de Lima Barbosa, ou vô Líbio como sempre o chamei, estava com um câncer bastante agressivo na cabeça. Difícil reencontrar um homem sempre tão ativo e vistoso naquelas condições. O tumor malignamente já havia comprometido sua coordenação motora. O homem que percorria aqueles dez alqueires desde criança com passadas rápidas e largas caminhava com extrema dificuldade. Mas fizera questão de ir comigo ao sítio Boa Vista por mais uma ou pela última vez.

Propositalmente, o vento trazia consigo um leque bastante grande de recordações. Os dias de trabalho pesado na roça. Os almoços de domingo. As valsas que ele dançava com minha avó ou com a vassoura. Nossos rastros marcando aquele chão. As árvores plantadas a quatro mãos. O som de nossos garfos batendo no fundo do caldeirão de alumínio. Os ensinamentos, os pensamentos e os sentimentos que nos transformaram em cúmplices ao longo da estrada. Os cheiros, as texturas, os sabores, as canções que faziam dali o mais mágico dos lugares.

O vento virou, como que querendo mudar o rumo da história, e um brilho nos olhos me fez reencontrar com o velho e bom Liberato. Ele fazia questão que eu voltasse a dirigir o seu trator. Era assim toda vez que eu chegava de viagem. Foi ele quem me ensinou a guiar aquele cavalo de aço. Tinha orgulho disso. Gostava de me ver cortando o estradão com aquela máquina. De certa forma, era como se ele se visse ali. Entre nós dois sempre existiu uma espécie de espelho. Com esse espírito, levantou-se com a teimosia de sempre e eu lhe dei o braço, conduzindo-o até o rancho.

Depois de colocar a chaminé, respirou fundo e, com a mão presa ao volante, deu um impulso para chegar até o assento. Talvez aquele possa ser considerado o seu último vôo. Para quem nos últimos tempos não conseguia sequer abotoar uma camisa ou encontrar o rumo de casa, era uma demonstração e tanto de sua força. Força de vontade. Como o câncer impiedoso já lhe devorava as memórias, ele não se lembrou onde estava a chave. Teria então de fazer o trator pegar no tranco. Na verdade, acho que o esquecimento da chave foi capricho do destino para que dirigíssemos novamente lado a lado.

Com ele no posto de comando, comecei a empurrar uma das rodas. Não era a primeira vez que fazia isso. Mas naquele dia era como se eu empurrasse o livro para o seu final. Quando o trator venceu o plano e embalou rapidamente num declive, tratei logo de pular com o bicho em movimento. Fui subindo e balançando e quase caindo até alcançar o pára-lama esquerdo, local que acostumei a fazer de garupa. Mas a situação ali era diferente, tanto que tive que puxar o volante para o meu lado para o trator não bater contra uma árvore. Entre tantos assaltos, o câncer já lhe roubava a visão.

Foi então que meu avô me passou a direção e apeou, com estilo, daquela máquina. Apeou para nunca mais montá-la. Do meio do terreiro, seu sorriso largo, de satisfação, acompanhou-me pela estrada até eu ser engolido pelo verde árvores tão verde quão seus olhos nos meus. O choro misturado com a poeira vermelha me dava certeza de que aquele era o último capítulo de um livro repleto de aventuras. E como um livro desta grandeza não poderia acabar em silêncio, fiz aquele trator roncar alto como nunca dantes havia roncado.

Naquela terça-feira de carnaval, quem ditou o ritmo não foram os tamborins, os surdos, os cavaquinhos ou as cuícas, mas um trator, que aos prantos, gritou embargado aos quatros cantos uma bela e intensa história feita de sonhos e terra.


Comentários

17/03/2010, por Célia A. S. Farinazze:

Onde quer que seu Vô Líbio esteja, deve estar a observar com profundo orgulho este neto amado. Deve estar juntinho de sua Vó Adélia,comentando o quanto vc Daniel, É especial à eles. E a brisa que secará tuas lágrimas, tenha certeza que é o soprar dos seus Avòs em seu rosto. Fique c/ Deus e c/ a certeza que lá de cima um casal ajuda os anjos a cuidarem de voce!


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