20/03/2010 - Imperador Liberato, o revoltoso
Meu avô morreu no mesmo dia em que há mais de dois mil anos morria o imperador romano Júlio Cesar – 15 de março. Coincidência ou não, Líbio, como era chamado pelos amigos, foi o nome de outro imperador romano (Líbio Severo). Mesmo não tendo acumulado a fortuna dos imperadores e nascido bem distante das terras do império romano, meu avô sempre foi tratado como uma espécie de imperador. Sua coroa era um chapéu de palha. Sua espada, uma enxada de duas libras.
Sentava na cabeceira de qualquer mesa. Na sala, tinha lugar cativo para assistir televisão. Tinha direito a duas poltronas, uma com direito a almofadas macias para acomodar suas costas e outra para ele esticar os pés. Seu trator era um Ford Major importado da Inglaterra. Não conheci ninguém que o tivesse vencido em uma disputa de braço de ferro. De uma forma ou de outra, ele sempre pôs medo em quem cruzasse seu caminho. Como nasceu no ano da Revolução (1932), ganhou o apelido de revoltoso. E fez valer esse apelido aterrorizando, no bom sentido, o mundo ao seu redor.
Duelava em corridas de charrete. Galopava pelos flancos. Enfrentava serpentes e jacarés. Derrubava colegas de escola na lama. Bebia um litro de cachaça num fôlego só. Ao contrário de calabouços, era colocado na escola em um armário escuro ao lado de um esqueleto. Isso quando as professoras não o faziam ajoelhar sobre grãos de milho. Desafiou e enfrentou o próprio pai em nome do amor pela sua mãe. Teve um leão, um tigre, uma pantera e um dragão (nomes de seus cachorros). Protegeu as divisas de seu reino, chegando a pegar pelos colarinhos aqueles que se atreviam a mudar sua cerca de lugar. Ao seu modo, construiu palácios, oásis e florestas.
Suas camisas eram quaradas, lavadas, passadas e, durante um tempo, engomadas. Tinha um garfo maior do que qualquer outro da casa para suas refeições. Comia de marmita no meio do terreiro do sítio, mas com todo estilo e pompa. Sabia contar suas sagas, detalhe por detalhe. Tomava banho de perfume e desodorante. Demorava mais do que qualquer noiva para se arrumar. Na falta do relógio Oriente esverdeado que gostava de carregar no pulso, o sol lhe dizia as horas. O dono do armazém guardava a sete chaves seus litros de cachaça amarela. Os carros na estrada abriam espaço para ele passar com sua Kombi 1969. E aqueles que o conheciam, pessoalmente ou de nome, faziam questão de lhe saudar quando passavam por ele. Ave Líbio!
Bastava um grito seu para domar qualquer bicho, deste ou de outro mundo. Bastava uma lágrima sua para emocionar qualquer um. E como imperador que se preze tem um pouco dos deuses, eu já testemunhei vento mudar de rumo, fogo minguar e chuva de pedra amansar sob o comando dele. Era capaz de pregar o próprio genro na parede e de se fartar num banquete de polenta com frango caipira. Já rasgou os botões da camisa de uma só vez ficando de peito nu para enfrentar um revolver. Levantava bigornas de mais de cem quilos, erguia um trator com as pernas, montava cavalo a pelo, entortava tampinhas de cerveja, trabalhava como um exército. Seu farto bigode e seus olhos em brasa impunham respeito.
Como prêmio de quebrar a polia do trator, ganhou dezessete pinos de platina no braço esquerdo. Fumava fazendo círculos de fumaça pelo ar. Fazia elegias à beleza e sonhava como um visionário. Se sua família não tivesse jogado tanto dinheiro fora, ele seria dono de terras a perder no horizonte. Dentro de suas proporções, teve impérios de gado, de painço, de leite, de abóboras, de algodão, de abacate... Tinha pelas festas a mesma paixão pelas batalhas. Tinha a brabeza dos bárbaros e conquistava qualquer um com seu jeito simples e alegre. Revoltoso, só no apelido. Imperador, só se for do império caboclo.
Adélia, sua esposa por mais de cinqüenta anos, sempre fez questão de arrumar seu prato, de deixar suas roupas arrumadas na cama para quando saísse do banho já encontrasse tudo pronto, de abrir e fechar os portões da garagem todo santo dia, de se curvar diante daquele topete. Mais do que isso, Adélia sempre fez questão de amá-lo heroicamente, como se ele fosse o seu imperador. E era com ela que ele dançava valsas como um conquistador forjado a partir do sangue de dois grandes impérios:
O primeiro, dos conquistadores portugueses; o segundo, dos índios que jamais se deixaram conquistar.
Observação do autor: A mãe de meu avô era portuguesa. Era em sua memória que vez ou outra ele cantava alguma canção de ninar do Além Tejo. Já a avó de seu pai era uma índia que foi capturada no laço pelo futuro marido.
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