Daniel Campos

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Crucificado

Nem toda história de amor começa com "era uma vez" e termina com "e foram felizes para sempre". Mas todas elas começam e terminam de algum jeito, independentemente se romântico ou trágico. E nessa história que vou contar agora, que se repete a mais de dois mil anos com mais de duas mil versões diferentes, o fim é uma espécie de tragédia romântica anunciada desde o começo. Uma tragédia inevitável, um romantismo irresistível. Um sentimento que se veste de uma nova esperança a cada novo começo. A esperança de uma salvação.

A nossa história começa na periferia, no subúrbio de Belém. Mas não a Belém que fica ao sul de Jerusalém, mas a Belém do Pará. Sim, estamos no Brasil. E lá, em uma madeireira clandestina, José dos Santos vai fazendo a madeira amazônica gritar nos dentes de uma serra. Quando criança, queria ser astronauta. Noite após noite, flertava com as estrelas. Achava mágico tudo aquilo. Mas conforme foi crescendo, as estrelas foram ficando mais distantes, a magia foi escorrendo por entre os dedos das mãos e ele se tornou peão. Sem carteira assinada, sem qualificação, sem férias, sem décimo terceiro, sem fundo de garantia. Era José do trabalho escravo.

Morava com a mãe, acamada há anos por uma tuberculose mal curada, com o pai bêbado de nascença e com três irmãos menores desempregados. Não tinha outra vida. Aliás, não tinha vida. Tinha sobrevida. E vale lembrar que sobrevida vem de sobrevivência. O pai surrava a mãe, que surrava o irmão mais novo, que chorava no ouvido dos mais velhos, que, por sua vez, brigavam entre si. Era uma verdadeira selva. Para apimentar a história, a filha do meio se chamava Madalena. Já nascera mulher da vida. Pronta a receber pedradas e julgamentos.

Mas a vida de José não acabava ali. Ele tinha um motivo para continuar olhando para os céus. Talvez a única estrela que lhe sobrara. Seu nome? Maria da Silva. Moça que conhecia desde sua infância. Afinal, era sua vizinha. Mas nunca trocaram um beijo sequer. Maria tinha quinze anos, fazia colegial à noite com uma vontade imensa de ser médica. Mas, como as condições eram poucas, trocava os estetoscópios pela lama. Durante o dia, catava caranguejo junto com a mãe nos mangues. À noite, estudava. Era preciso trabalhar para ajudar no orçamento da casa. O pai havia fugido com outra. Mais precisamente, com uma tia de José. Por isso, as duas famílias não se falavam. Aliás, se odiavam. Uma culpava a outra que culpava a uma.

Por tudo isso, José tinha medo de se declarar e ficava só observando sua última estrela de forma longínqua. Mas um dia, o longe se fez perto. Numa noite estrelada, de Círio de Nazaré, os dois se acharam. E tão logo se encontraram se beijaram e se apaixonaram e se abraçaram e se juraram e se declararam e se amaram. A festa passou e, por conta dos problemas, se afastaram. Eles queriam casar, viver felizes para sempre, mas ele queria melhorar de vida em primeiro lugar e ela não queria deixar a mãe.

A situação foi ficando insustentável. O desejo era maior do que a família, do que o trabalho, do que o presente. Aliás, aquele amor não cabia no presente. Era preciso fazer nascer um futuro. Então, marcaram de se encontrar para fugir. Maria não apareceu. Chorou no meio da lama e dos caranguejos. José foi sozinho. Enquanto Maria optou por ficar com a mãe, José foi ser peão de gado. Era o desterro, era o destino, eram as estrelas.

Falando em nascimento, Maria começou a ficar enjoada, a ter vontades e desejos inacreditáveis. Estava grávida e tentava de todas as formas esconder isso da mãe, que já vivia desconfiada. Ela rezava todas as noites para José voltar. Olhando para as estrelas, pedia para que uma delas trouxesse seu amado de volta. Do outro lado, José tentava encontrar sua amada entre aquelas bailarinas do céu.

Depois de quatro meses no serviço, José havia conquistado a confiança do patrão. Não tinha carteira assinada e o salário não era tão bom assim, mas já havia conseguido uma casinha para morar na fazenda mesmo, junto a outros empregados. Era hora de tentar buscar Maria mais uma vez. Ao chegar, os olhos de Maria brilharam como as estrelas e, de uma só vez, contou a novidade. Maria, não acreditava. José, não acreditava. A mãe de Maria, não acreditava. Maria chorou, José a repreendeu e sua mãe a excomungou.

José dizia que o filho era de outro e sua mãe queria que aquela criança fosse de outro mesmo. Não suportava ser avó de um filho de José. Maria dizia que o filho era do amor dos dois. E José queria, até tentava, mas não conseguia acreditar naquele amor. Achava que Maria o traíra com outro enquanto estava fora. Afinal, ficaram juntos apenas uma única vez. Numa mistura de gênesis com apocalipse, foram nove meses de calvário. E foram nove meses tentando, pensando, sonhando, sofrendo, apanhando e amando aquela criança proibida.

Maria não fez pré-natal porque não tinha incentivo, dinheiro e qualquer instrução. José só faltava ir a um programa de TV e exigir um exame de DNA. A barriga crescia e ela continuava na lama dos caranguejos. Sua mãe queria que ela tomasse um chá para expurgar aquela criança. Ela resistia. Sua mãe a expulsara de casa e a deserdara de qualquer sentimento já tido. José e Maria, mesmo afastados, continuaram se amando por meio das estrelas. E uma dessas estrelas desceu para falar com José. Se isso foi sonho ou realidade, não importa. O que vale é que as vésperas do nascimento, como que por milagre, José voltou a bater na porta de Maria. No caminho, arrancou uma rosa da vizinha e foi ao seu encontro aos prantos.

Ainda noite, José gritou Maria, que abriu sua janela. Ele gritava que veio para buscá-la. No céu, caia uma chuva de estrelas. E vieram outras noites, outras estrelas, outras dores. Na mudança de lua, uma estrela cortou o céu e Maria não agüentou. Não havia hospital por perto, tampouco qualquer parteira. José colocou Maria em uma carroça e tentou levá-la para a cidade. As contrações estavam avançadas. José ajudou no parto e teve seu filho no meio de um pasto, ao lado de vacas magras e de um burro, que puxava a carroça.

Como nascera no dia 25 de dezembro, foi batizado de Jesus. Jesus da Silva Santos. Mas não apareceram reis magos com ouro, mirra e incenso. Também não apareceu nenhum pastor de ovelhas e o resto dos peões estava dormindo. Os camelos haviam fugido, as grutas ainda não haviam sido descobertas e os anjos com longas asas pareciam não caminhar por ali. Faltavam muitas coisas, em compensação, os Herodes eram tantos.

Aquele Jesus, que nascera pobre de pai e mãe, cresceria e seria crucificado várias vezes pela falta de oportunidade de um país de poucos. Crucificado pela falta de emprego. Crucificado pela fome. Crucificado pela educação precária de um país que ainda não voltou seus olhos para as escolas. Crucificado pelo preconceito vigente de uma elite hipócrita. Crucificado pelas filas nos postos de saúde sem médicos, sem medicamentos. Crucificado pelo preço do arroz com feijão. Crucificado pela exclusão digital, social, moral e de capital. Dia após dia, aquele Jesus seria crucificado por um exército bem mais aterrorizante do que o dos romanos.

Por essas e outras, aquele menino Jesus já nascera crucificado. E seus pais tão logo comemoram seu nascimento, choraram sua crucificação. Mas era preciso continuar acreditando nas estrelas caídas do céu. Aplausos aos meninos Jesus salvadores. Glórias aos meninos Jesus guerreiros. Piedade dos meninos Jesus miseráveis. Meninos Jesus de Belém, de Paraisópolis, do Morro do Papelão, de Guaribas, da Rocinha, de Manari, do Morro do Macaco, da Candelária, dos quilombos, das favelas, dos alagados, dos subúrbios, das aldeias, dos sertões, dos viadutos, das sarjetas... Reze por esses meninos. Chore por esses meninos. Acredite nesses meninos.


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