Contas de Contos
Vestida de baile
Com um vestido de baile que nunca dançou, saiu pela cidade afora. Saltos nas mãos, pés na grama úmida, olhos para além dos anéis de saturno. Vestido cor de peixe, saltos cor de lua, grama cor do mar que não havia ali e olhos cor de céu em noite de cometas. Passos de campari. Ora mais pra lá ora mais pra cá de uma linha imaginária. Assim como a bebida, seus passos eram vermelhos e vinham num doce-amargo. Em seus passos folhas, caules, raízes, frutos e flores dos quatro continentes.
Não levava cigarros na boca ou na bolsa, aliás, não levava bolsa nem o toque de um celular. Mas levava preocupações. Era o trabalho da faculdade, o crediário de três ou quatro necessidades fúteis ou futilidades necessárias, era o mau-humor do chefe, era o sono, era o vizinho, era o começo da gripe, era o ciúme do pai, era a tosse da mãe, era a histeria da irmã, era a estripulia de um cachorro, era o relógio quebrado, era a roupa manchada, era um disco emprestado, era a azia do jantar, era o cunhado bêbado, era o carro enguiçado, era a falta de tempo, era a segunda-feira, era a falta de algo ou de alguém, era o fim da festa antes do fim. Festa?
Um tal de não sei quem, de camisa pólo e calça mostarda dançou com outra, conversou com outra, rodou com outra, bebeu com outra, beijou outra... E ela dançou sozinha, conversou sozinha, rodou sozinha, bebeu sozinha e, por fim, beijou o ciúme. Bem que tentou disfarçar, agarrar o garçom, dar um show à parte, mas era tímida e o máximo que conseguiu foi ficar num canto feito um arranjo de espinhos num vaso chinês.
Não participou das paqueras, das conversas, dos canapés... Só bebeu e meio fraca quase caiu em si mesma. E foi se remoendo, se sufocando, se consumindo até que as luzes se embaralharam se misturaram se entrelaçaram e ela se viu a um palmo daquele beijo que ela tentava esquecer. E ela deu o mais silencioso dos gritos, aquele que ecoou para os surdos do amor. E saiu sem direção, bêbada de tantas cenas que se repetiam em sua cabeça.
E o vestido era cor de peixe, os saltos eram cor de lua, a grama era cor do mar que não havia ali e os olhos eram cor de céu em noite de cometas. Ah! Os cometas... Por onde andavam os cometas?
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