Daniel Campos

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Receita da dona ofélia

A vida, necessariamente, não tem uma receita ideal
Podemos vivê-la de várias formas e jeitos
Tomemos por exemplo
Os principais extremos de qualquer humano
O amor e a dor
Não cabem em receita alguma
O amor é livre demais para se deixar prender
Em uma receita
E a dor burla qualquer receita e acontece nas contra-indicações
Mas, nessa falta de receita, há uma receita a ser seguida
Se quiser seguir a receita de um café
Da manhã ou da tarde ao lado da criatura amada.
Mas atenção, dona Ofélia, a maior quituteira lá do interior
Já dizia: é preciso estar de bom humor.
Talvez esse seja o grande segredo de qualquer receita
E até do que não tem receita.
Mas voltemos à cozinha
A principal locação desse poema.
E não precisa ser uma cozinha de programa de tv
Poucos metros quadrados
São mais que suficientes
Para separar as claras das gemas
De cinco ovos caipiras
De preferência, de galinhas carijós.
Com a força das mulheres guerreiras
De outras civilizações
Bata as gemas com duas xícaras grandes de açúcar e,
Para espanto de qualquer criança, uma pitada de sal.
Se o bolo é doce para que o sal?
Mas se dona Ofélia fala, quem há de dizer o contrário.
E ela está lá, sentada naquela cadeira de madeira colonial
No canto da sala de estar
Batendo os ovos de sal e de açúcar
Com movimentos circulares
E anote ai: no sentido horário
Como se inventasse o seu próprio tempo
Como se provocasse um redemoinho
Como se, feito um moinho, girasse
Suas pás ao movimento dos sonhos.
E o tempo se acaba
E o redemoinho pára
E os moinhos não moem mais nada
Quando dona Ofélia lambe o dedo
Aliás, naquele momento não é mais a matriarca
É a criança
Que, sabida, espiava seus pais fazendo doce de tabuleiro
Que, pequenina, subia em uma caixa para cozinhar
Que era primeira aluna da classe
E sonhava mexer com ingredientes secretos
Ao se formar em farmácia.
A menina cresceu, andou perdida
Em novos caminhos
Mas não foi esquecida.
E mais uma vez, a menina se vai
E a senhora
Com a experiência de olhos fartos
Pára e observa o estouro das bolhas
Na superfície da massa
Não eram bolhas de champanhe
Não eram bolhas de sabão
Mas que alegria havia nas bolhas
De açúcar.
Parece que se passaram 65 anos
Mas até agora só foram sete minutos
E trinta segundos.
Os pés ganham os ladrinhos frios
Pequenos e rosados
E caminham numa elegância
Parisiense,
Discreta e feminina
Chega ao fogão de asas
E morna um copo americano
De leite gelado
Leite vindo no latão de cobre
Da roça do compadre fulano de tal.
E, como uma feiticeira
De contos de fada
Mistura duas xícaras de trigo
E vai regando com leite
Sem deixar a massa empolar.
As bolhas agora são de trigo
E estouram ainda mais leves.
Pega dois garfos de ágata
E bate as claras em ponto de neve
À espreita do sol alaranjado
Das três tarde da tarde
Que se impõe soberano lá fora.
Mas lá fora é só o lá fora.
Lá fora é a realidade
Lá fora é a saudade
Lá fora é a cidade
Aqui dentro é um mundo à parte
Mágico por natureza.
E ali, num cenário cinqüentenário
Ela apóia a tigela em seu colo
E bate as claras desenhando
Meias luas
Ela que sempre cortou cabelo
Plantou suas salsas
Podou suas rosas
Seguindo as fases lunares
Agora desenha luas
Por longos sete minutos
Naquela nuvem
De neve branca.
As mãos que riscam um fósforo
E acende o forno a exatos 175 graus
Nem mais, nem menos
São as mesmas que "sujam"
A assadeira com óleo
E polvilham um pouquinho de trigo
Naquele retângulo vazio.
A campainha toca
Algum vizinho que já previa o bolo?
Alguma criança pra benzer?
Alguém querendo encomendar um bordado?
Que nada, era só seu namorado
De bodas de ouro
Brincalhão, avisando que chegara
Da caminhada vespertina.
E por falar em amor crescente
É hora de duas colheradas de fermento
Colheres de chá
E de misturar vagarosamente
A clara na massa
Num movimento de um minuto.
É válido dizer que os minutos de dona Ofélia
Têm mais de sessenta segundos
Definitivamente, é um outro tempo.
As mãos bordadeiras
Vão preenchendo aquela assadeira
E, mais uma vez, a menina volta,
E dona Ofélia lambe o dedo.
Sem maiores esperas
A assadeira vai ao forno
Que muda de temperatura
Agora, uma febre de 150º
Envolve aquela massa
E dali a pouco vem o cheiro
Que dá água na boca
Das conversas às voltas
De uma mulher
Que entre uma receita
E outra
Criou e recriou seus amores.


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