Daniel Campos

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06/04/2008 - Porque a chuva virá

Há um sapo assobiando na beira do igarapé, porque a chuva virá.

Há uma cigarra morrendo, se esvaindo de tanto cantar, porque a chuva virá.

Há um ovo no muro, enfeitiçando o sol, porque a chuva virá.

Há um cachorro debaixo da cama, porque a chuva virá.

Há quem tente salvar o pouco que tem, porque a chuva virá.

Há corpos ardentes flagrados pelos clarões, porque a chuva virá.

Há uma algazarra de pássaros, porque a chuva virá.

Há um bode coçando na cerca, porque a chuva virá.

Há uma sucessão de nuvens no céu, porque a chuva virá.

Há um comunicado oficial no jornal, porque a chuva virá.

Há quem espere a volta de Noé, porque a chuva virá.

Há uma aranha reforçando a teia, porque a chuva virá.

Há uma criança toda embrulhada, porque a chuva virá.

Há mulheres recolhendo a roupa do varal, porque a chuva virá.

Há um peixe querendo escapar, porque a chuva virá.

Há quem confunda o azul do mar com a água do céu,
porque a chuva virá.

Há um desfile de sombrinhas e guarda-chuvas, porque a chuva virá.

Há limpadores de para brisa bailando para lá e para cá, porque a chuva virá.

Há um sorveteiro desanimado, porque a chuva virá.

Há uma paixão debaixo das cobertas, porque a chuva virá.

Há quem espirre, sem nem estar resfriado, porque a chuva virá.

Há um beijo de chocolate quente, porque a chuva virá.

Há um desejo que se encolhe, porque a chuva virá.

Há uma reza ensandecida pedindo calma, porque a chuva virá.

Há quem brinque que São Pedro vai tomar banho, porque a chuva virá.

Há quem se cale e mergulhe naquelas negras-nuvens, porque a chuva virá.

Há jogadores de futebol escorregando, porque a chuva virá.

Há uma ameaça de mofo rondando as roupas, porque a chuva virá.

Há um sol que cai, porque a chuva virá.

Há um leão preocupado com sua juba, porque a chuva virá.

Há um lagarto escondido na toca, porque a chuva virá.

Há um camaleão mudando de cor, porque a chuva virá.

Há um verde musgo esperando para se alastrar, porque a chuva virá.

Há um galo que, em silêncio, sobe no poleiro, porque a chuva virá.

Há quem compre vidros e mais vidros de vitamina C, porque a chuva virá.

Há quem prepare uma canja de galinha, porque a chuva virá.

Há mulheres aflitas com seus cabelos, porque a chuva virá.

Há uma poeira que suspira seus últimos momentos, porque a chuva virá.

Há quem acenda velas, porque a chuva virá.

Há flores com água na boca, porque a chuva virá.

Há um mendigo que maldiz a vida, porque a chuva virá.

Há uma fila de formigas estocando comida, porque a chuva virá.

Há um fechar de portas e janelas, porque a chuva virá.

Há um sentimento de fome que não cessa, porque a chuva virá.

Há uma terra que abre seus poros, porque a chuva virá.

Há quem arranje motivo para chorar, porque a chuva virá.

Há raízes que sobem à superfície, porque a chuva virá.

Há plantações se aquarelando feito revistas infantis, porque a chuva virá.

Há um poeta mais que inspirado, porque a chuva virá.

Há um medo de trovão vagando pelo ar, porque a chuva virá.

Há um vento remando, puxando, trazendo de lá, porque a chuva virá.

Há ondas em festa, querendo dominar o mundo, porque a chuva virá.

Há botas e botinas tateando as ruas, porque a chuva virá.

Há carros de Fórmula-1 colocando pneus biscoito, porque a chuva virá.

Há, por inveja, uma tempestade de areia, porque a chuva virá.

Há uma maquiagem pronta a borrar o rosto, porque a chuva virá.

Há casais que trocam as velas por relâmpagos, porque a chuva virá.

Há um vinho, encorpado e tinto, nos copos, porque a chuva virá.

Há um acúmulo de barcos no porto, porque a chuva virá.

Há uma coreografia de patos, porque a chuva virá.

Há um chá com biscoito pronto para ser servido, porque a chuva virá.

Há um perfume mais forte nas peles, porque a chuva virá.

Há quem desfaça os planos, porque a chuva virá.

Há uma praia que descansa, porque a chuva virá.

Há um papagaio que repita vai chover, vai chover,
porque a chuva virá.

Há um corpo que se despe para se entregar, porque a chuva virá.

Há uma viagem de avião sujeita as turbulências, porque a chuva virá.

Há um anjo de asas molhadas, porque a chuva virá.

Há quem deixe o banho para depois, porque a chuva virá.

Há um cigarro se apagando, porque a chuva virá.

Há os mal-humorados de plantão, porque a chuva virá.

Há quem corra para casa, porque a chuva virá.

Há quem levante as mãos ao céu e agradeça, porque a chuva virá.

Há um gato sumido, porque a chuva virá.

Há uma lua que fica distante, porque a chuva virá.

Há quem peça mais uns dias de vida, porque a chuva virá.

Há quem se enrole em fios de lã, porque a chuva virá.

Há uma vontade de assistir filme, porque a chuva virá.

Há uma noiva não querendo molhar o vestido, porque a chuva virá.

Há quem esquente a orelha com uma cachaça, porque a chuva virá.

Há quem sonhe com um carro que vire barco, porque a chuva virá.

Há o suspense da enchente, porque a chuva virá.

Há quem espalhe baldes e panelas pela casa, porque a chuva virá.

Há quem saia para pescar traíra, porque a chuva virá.

Há um travesseiro que convida ao sono, porque a chuva virá.

Há uma incessante procura por um colo, porque a chuva virá.

Há um céu que se agiganta, porque a chuva virá.

Há quem se aventure e saia semeando sem parar, porque a chuva virá.

Há um Deus que contempla sua criação, porque a chuva virá.


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