Daniel Campos

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Vitrines

O sol, imenso e amarelo, ardia em febre. Perdia-se facilmente a conta entre os tantos graus Celsius. Aflito, deixava um pouco dessa febre nos caminhos por onde andava a procura de algo que não se sabia exatamente o quê. Enquanto procurava, a vida prosseguia com as suas tarefas de rotina.

O sol quente. Em uma espécie de tontura, ela apóia-se numa vitrine qualquer. Cabeça baixa. Pouco a pouco, a sensação de ver o mundo sem eixo, sem gravidade, sem juízo. Conforme respira lentamente, os olhos se enchem de sol e os mistérios se confundem. Os mistérios daquele sol e daqueles olhos, lado a lado. E numa falta de memória repentina, não sabia onde estava. A única coisa que sabia é que aqueles que lhe olhavam da vitrine, e que parecia conhecer de algum lugar, tinham uma tristeza qualquer. Aqueles olhos tristes, berçários de beleza.

Banhados de sol, as coisas do mundo passavam apressadas. Os carros, em tantos roncos, passavam apressados. O carteiro, coberto de palavras, passava apressado. A noiva, que nunca se sentiu traída, passava apressada. O homem, cheio de dívidas, passava apressado. O menino, com uma bola de futebol debaixo do braço, passava apressado. A mãe que segurava o filho pequeno pela mão fazia com que ele aprendesse sua pressa e, assim, passavam apressados. O sorveteiro, de buzina barulhenta, passava apressado. A menina, numa falta de segredos para dizer ao diário, passava apressada. A moça, com os olhos corridos nas vitrines, passava apressada. E por falar em vitrine, os olhos continuavam lá. E aquelas lembranças pareciam prender o dia, segurar seus cabelos, rasgar suas roupas, abrir os braços diante dele... Só para ele não passar, ao menos, com tanta pressa.

Cobertas de sol, as ruas se esparramavam como mares secos, trincados, num sal feito de pedra. Aquele concreto todo. Aquela brutalidade toda. Num dos reflexos da vitrine, uma árvore. Mais uma coadjuvante daquele dia apressado. Uma árvore de folhas largas, de um verde desbotado e de algumas flores rosadas, que ora ou outra, caiam sustentadas por um vento leve, até chegarem ao chão e serem entregues, pela última vez, ao esquecimento.

Quem naquela convulsão de movimentos iria notar uma flor se desprender de uma das árvores e anestesiada pelo vento brincar um pouco no ar até repousar no chão? Logo passaria um sapato, um pneu, uma vassoura e ninguém iria notar a beleza da flor. Se ainda chovesse e tivesse enxurrada, talvez ela fosse como embarcação sem rumo, parar em outros mares. E talvez a notassem em outros mares. Mas não havia chuva, as únicas nuvens que manchavam o céu eram umas nuvens despenteadas e brancas que tinham na barriga alguns tons claros de cinza.

O sol ardia e nas ruas, nas calçadas, nos corredores dos edifícios, as pessoas passavam quase sem rosto. Medo disso, medo daquilo. Todos se trancavam dentro de si próprio. Com medo das próprias palavras, passavam num silêncio apressado. E eram todas as cores, credos, classes, passando na mesma pressa, no mesmo caminho, no mesmo passo, na mesma bagunça de ritmos. Talvez a bagunça de sentimentos que refletiam daqueles olhos da vitrine.

Eis que de repente, notas de uma melodia escorrem pelo vento. O dia, em si, é rasgado, como se unhas cortassem aquela pele azul do que chamam de céu. Não havia sangue, nem gritos de dor. O que havia era uma sensação de que a felicidade existia e não estava longe. E como se tombasse um vidro de nanquim sobre a vida, a escuridão se espalhou sem que tivesse que obedecer a um determinado horário. E numa procissão, surgiram deuses de todas as mitologias, trazendo velas. Em suas mãos, a chama das estrelas.

E não havia mais sol, e não havia mais carros, e não havia mais pessoas sem rostos, e não havia mais ruas e não havia mais pressa.

E numa magia ainda não compreendida, uma mulher feita de movimentos, estendeu as mãos àquela música e começou a passar pela vida que ficou parada. Talvez fosse valsa, tango, choro, samba, bolero... Talvez fossem tantos ritmos num só ritmo. Entre tantas incertezas, a única certeza era um certo Tom. De fato, era Jobim. E jobiniando ela dançava como se guardasse os movimentos do mundo em si.

E como bailarina, na ponta dos pés, delicada e precisa, pisava com cuidado nos dramas dos que a contemplavam numa ausência total de movimento.

E os longos céus escuros escorriam pelos cabelos que o vento não deixava em paz. E não se sabia se era feita de ar ou de promessas. O vestido tinha o mesmo tom daquela flor que caia em tanta dança e que a vida, cheia de pressa, parecia não perceber. E não se sabia se o chão daquele palco era feito de mar, de brasa, de folhas secas, de vento, de terra fria ou até se aquele palco tinha alguma espécie de chão.

E a primeira vista, dançava consigo mesmo, não precisava de mais ninguém. Dançava nas tantas lembranças e tantos sonhos inacabados daqueles olhos tombados em vitrines. Dançava e embora tivesse a sensação de estar completa, de não faltar nada, de ter o tempo desnorteado e debruçado em seus seios, embora tivesse o cosmo e os deuses entregues ao seu ritmo, dançava a sós com o que sobrava de si.

E num segundo de repente, acabou-se a música. Acabou-se vagarosamente. Era cada vez mais difícil ouvi-la. Era cada vez mais difícil saber aonde iriam se dar os passos. Era cada vez mais difícil se entregar ao movimento. Sem outra opção, o corpo se entrega ao silêncio.

E então, os deuses não mais iluminam o seu caminho, deixam fugir as estrelas, o palco, os sentimentos todos. E do palco, nasce os carros e suas buzinas, as pessoas que se trombam e não se vêem e o sol e suas procuras. Tudo volta ao seu lugar.

E a bailarina, numa espécie de abandono, fica no meio da rua, no meio do trânsito, no meio da cidade, no meio de um universo que escapou das histórias que contam por aí e ninguém acredita. Era como se o mundo tivesse roubado a vida da bailarina. Todo aquele movimento que guardava em seu corpo. E fora ela, ninguém mais se lembrava da dança, do espetáculo, dos sonhos, da noite.

No falso cristal da vitrine, os olhos, tristes e negros, ganhavam mais lembranças.


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